A história por trás do dissídio coletivo nº 86/63
Os meses de janeiro e fevereiro são marcados por datas relevantes para a cidade de Santos, uma das mais importantes da 2ª Região e primeiro local da atual jurisdição a receber uma junta de conciliação e julgamento fora da capital, em 1944 (no mesmo ano, foram instaladas as juntas de Cuiabá, Curitiba, Campinas e Jundiaí – pertencentes a outros Regionais, atualmente).



Em 28 de janeiro, comemora-se o Dia dos Portuários, uma referência à assinatura da Carta Régia, de 1808, que abriu os portos às nações amigas, poucos dias após a chegada da família real ao Brasil. Já o dia 2 de fevereiro de 1892 é a data da chegada do primeiro navio ao novo porto da cidade, marcando seu aniversário.
Apesar de ter sido ponto de parada de diversas expedições ao longo do tempo, após a chegada dos portugueses ao país, Santos começou a crescer em especial a partir do século XIX, quando o porto da cidade passou a ganhar maior importância para o escoamento do café pelo estado de São Paulo, com a inauguração, em 1867, da primeira ferrovia que dava acesso ao litoral paulista, a São Paulo Railway, que ligava Santos a Jundiaí.



A construção do novo cais do porto da cidade, em 1888, foi acompanhada pela iniciativa de conceder sua exploração à iniciativa privada. A concorrência pública foi vencida pela Companhia Docas de Santos (à época Gaffreé, Guinle & Cia) e iniciada naquele mesmo ano.



No dia 2 de fevereiro de 1892, atracava ali o vapor inglês Nasmith, inaugurando os primeiros 260 metros de cais construídos do novo porto (atualmente, são 16 km de cais). Naquele ano, o porto foi responsável pelo movimento de 124.739 toneladas de cargas. A construção seria fundamental para o desenvolvimento econômico da cidade, gerando emprego e renda para a população local e do entorno.

A obra foi ainda responsável pela melhoria das condições sanitárias da cidade, como destacou a edição de 26 de dezembro de 1909, do The Times, de Londres: “A cidade de Santos, que em 1892 não passava de vestígio insalubre dos tempos coloniais, transformou-se com as obras do cais em conhecido porto de saúde, com belas ruas e avenidas, bonitos edifícios e trens elétricos”.
A concessão da exploração do porto pertenceu à Companhia Docas de Santos até 1980, quando surgiu a Companhia Docas do Estado de São Paulo (Codesp), órgão estatal que passou a monopolizar as operações do porto, administrando-o. Em 1993, com a edição da Lei de Modernização dos Portos, que revogou o monopólio público, o porto passou a ser gerido pelo Conselho de Autoridade Portuário (CAP), com função legislativa, e pelo Codesp, com função administrativa. Foi criado ainda o Órgão gestor de mão de obra (Ogmo), associação civil sem fins lucrativos que administra e fornece trabalhadores portuários avulsos.
Atualmente, o porto de Santos é o maior complexo portuário da América Latina, respondendo por quase um terço das trocas comerciais brasileiras. Em 2018, foram movimentadas mais de 133 milhões de toneladas de cargas, recorde de sua história, sendo líder mundial nas exportações de açúcar, sucos, café e carne bovina.
Uma categoria forte
A categoria portuária é marcante na história de Santos. Organizados, combativos e atuantes, os portuários representam a maior parte da mão de obra da cidade, em uma atividade estratégica para o município. Suas mobilizações, em especial as greves, sempre tiveram grande repercussão.
Até o início do século XX, a maior parte dos trabalhadores portuários tinha origem espanhola e portuguesa. Prova disso é que, na greve dos estivadores de 1889, foi necessário chamar os cônsules de Portugal e da Espanha para acalmar os grevistas.




Ao longo dos anos, foram vários os movimentos paredistas. Em 1908, os portuários reivindicavam aumento salarial e jornada de oito horas. Mas o clima era tenso. O movimento sofreu forte repressão, tendo o governo enviado tropas do Exército e navios de guerra para conter os ânimos. O direito à jornada de oito horas seria conquistado somente em 1919, após novo movimento paredista, igualmente reprimido com violência. Uma segunda mobilização aconteceu no mesmo ano. O objetivo era aumento salarial e alguns benefícios que melhorassem a qualidade de vida dos trabalhadores. Com duração de dois meses, teve como consequência a substituição dos grevistas por cerca de dois mil trabalhadores que não participaram do movimento.
É de 1919 também a criação da Sociedade dos Estivadores de Santos, embrião do sindicato da categoria, que seria fechada pela polícia em 1926, mas cujas atividades seriam retomadas em 1930. Nessa época, os trabalhadores conquistaram o closed shop, direito que restringia as vagas de trabalho no porto aos trabalhadores sindicalizados – e que foi institucionalizado em 1943, com o advento da CLT. Outra importante conquista foi o fim da “carga na cabeça”. Por muitos anos, cada homem carregava, de uma só vez, 60 kg de sacaria, na cabeça. Foi a atuação do sindicato que conseguiu com que os trabalhadores ficassem livres do peso, passando a carga a ser transportada em carrinhos.
Também em 1943 era criada, em Santos, a primeira junta de conciliação da Baixada Santista, que seria instalada no ano seguinte, com o auxílio financeiro de 33 sindicatos de empregados e empregadores da localidade, uma vez que a 2ª Região (à época ainda Conselho Regional do Trabalho) não possuía verba suficiente. A história sobre a ajuda feita pelo sindicato consta no Relatório Anual de Atividades do CRT-2, do ano de 1944, documento pertencente ao acervo histórico do Regional (é possível a consulta aos relatórios produzidos desde o ano de 1941). Redigido anualmente pelos presidentes dos tribunais ao TST, o documento tem como objetivo informar os acontecimentos e números do Regional. Sobre a instalação da junta de Santos, o presidente do Regional à época, Nebrídio Negreiros, conta: “Informa a Junta que os sindicatos locais decoraram as janelas com cortinas, deram um grupo estofado com mesa de centro e tapete para o gabinete da Presidência, porta-chapéus e dois arquivos de madeira (para fichário) para a Secretaria, além de cinzeiros, bandeja, jarra e copos para água”. Negreiros ainda complementa: “Continuando a se referir à colaboração dos sindicatos, informa a Junta que tem em uso duas máquinas de escrever cedidas, por empréstimo, pelo Sindicato dos Operários no Serviço Portuário de Santos, por não dispor a Junta de máquinas próprias”.



Em 1945, já era evidente a necessidade de criação de mais uma junta de conciliação e julgamento em Santos, o que aconteceu dez anos após a instalação da 1ª JCJ, em 1954.
A atuação dos sindicatos
A sindicalização dos trabalhadores de Santos começou a ser percebida com maior intensidade a partir de 1942. Ainda hoje, a quantidade de sindicatos é numerosa. Dois dos principais sindicatos da cidade, inclusive, são justamente da categoria portuária.
Fundado em 1931, o Sindicato dos Operários e Trabalhadores Portuários em Geral nas Administrações dos Portos, Terminais Privativos e Retroportos do Estado de São Paulo – Sintraport – é um dos mais atuantes. Para se ter uma ideia de seu prestígio, em 1952, o evento de inauguração de sua sede própria contou com a presença do presidente à época, Getúlio Vargas. Naquele momento, o presidente do sindicato era José Gonçalves, amigo próximo de Vargas e de Jango, então Ministro do Trabalho. Gonçalves começou a trabalhar no porto de Santos em 1934, no armazém III das Docas. Aposentou-se em 1969, após 35 anos de serviços prestados à companhia. Foi presidente do sindicato por quase dez anos. Nesse período, esteve à frente de diversos pleitos: um deles foi o fim da “carga nas cabeças”, vencida pela categoria na década de 50.


O Sintraport organizou diversas greves, com destaque para a de março de 1980, a primeira no porto após o golpe militar de 1964. Os trabalhadores pleiteavam um índice de produtividade superior ao concedido pela Companhia Docas (equiparando ao percentual concedido pela Superintendência Nacional da Marinha Mercante, Sunamam, aos estivadores). Mais de 35 mil trabalhadores de 24 categorias de braços cruzados. A repressão foi forte. A Polícia Militar foi responsável pelo policiamento, ajudada por 200 fuzileiros navais.




A greve de fevereiro de 1991 também foi histórica, e resultou em mais de cinco mil demissões na Companhia Docas do Estado de São Paulo (Codesp), que foram revogadas após a categoria parar o porto e boa parte da cidade, principalmente o centro. Recentemente, em 2013, nova mobilização: desta vez contra o governo federal e a MP 595/2012, que retirava vários direitos dos portuários.
A luta de 1963 no acervo histórico do TRT-2
Ao longo do tempo, foram diversas as conquistas da categoria, fruto da luta dos trabalhadores: uma delas foi a gratificação anual, estabelecida por meio de acordo coletivo, em 1923, paga a todos os trabalhadores, ao fim de cada ano, em valor correspondente a um mês de salário e, no caso de trabalhadores “das categorias superiores”, dois meses de salário. Em 1962, com a publicação da lei nº 4.090/62, que estabeleceu o instituto do 13º salário (gratificação natalina), a Companhia Docas deixou de efetuar o pagamento da gratificação anual, o que levou os portuários da Baixada Santista à Justiça do Trabalho da 2ª Região.
Sob o número 86/1963, o dissídio coletivo, impetrado no dia 27 de fevereiro de 1963, pertencente ao acervo histórico do TRT-2, conta como suscitante o Sindicato dos Empregados na Administração dos Serviços Portuários de Santos, Sindicato dos Operários nos Serviços Portuários de Santos, São Vicente, Guarujá e Cubatão e Sindicato dos Condutores de Veículos Rodoviários de Santos e Companhia Docas de Santos, como suscitado.
Na ação, os trabalhadores pedem a volta da gratificação anual, paga pela Companhia Docas aos trabalhadores, desde 1923, e que havia deixado de ser percebida a partir de 1962, com o advento da lei nº 4.090/62. Argumentou a Companhia Docas que se tratava de substituição, uma vez que a gratificação anual tinha os mesmos moldes e objetivos da gratificação natalina.
Entenderam os juízes do TRT, por maioria de votos, que a gratificação anual paga pela Companhia Docas tinha status de salário e que a lei nº 4.090 trazia “nova regalia ao trabalhador”. Assim, caso houvesse a substituição de tal gratificação pelo 13º salário, os trabalhadores estariam sendo prejudicados, perdendo direitos e tendo seus salários reduzidos. Foram vencidos os juízes Roberto Barretto Prado, revisor, Carlos Bandeira Lins, Hélio Tupinambá Fonseca e Wilson de Souza Campos Batalha, que acreditavam que a gratificação tinha “indisfarçável índole de Natal” e, por isso, era “lícita a compensação da gratificação anual com a gratificação de Natal instituída pela lei nº 4.090 de 1962”. O acórdão é de 17 de julho de 1963. À época, o secretário do Tribunal era o servidor aposentado Domingos Manoel Escalera, cargo que hoje seria o equivalente ao de secretário-geral judiciário com funções também administrativas.
Inconformado com a decisão, o sindicato patronal entrou com recurso ao TST, em agosto de 1963. Enquanto aguardava a decisão da instância superior, novas greves assolariam a cidade de Santos: duas delas, gerais.

No início do mês de setembro, o movimento paredista durou quatro dias e mobilizou diversas categorias de trabalhadores da região da Baixada Santista. Como justificativa, solidariedade à greve dos enfermeiros da Santa Casa de Misericórdia de Santos, ocorrida a partir do mês de agosto daquele ano. Os trabalhadores pleiteavam reajustes salariais e melhorias nas condições de trabalho. No primeiro dissídio, nº 235/63, por insuficiência de recursos, a Santa Casa foi excluída da lide, o que levou à greve dos enfermeiro e resultou em um segundo dissídio, nº 370/63, proposto em novembro do mesmo ano. Dessa vez o reajuste determinado foi de 80%, dentre outros benefícios. Com a greve geral, o porto foi paralisado, assim como a ferrovia Santos-Jundiaí, cujos trabalhadores entraram em greve em solidariedade aos colegas da Baixada. O movimento foi duramente reprimido.

No dia 30 de outubro de 1963, oito meses após a propositura do dissídio (que aconteceu em 28 de fevereiro de 1963), saía o resultado final. Entendeu a corte, por maioria de votos, ser legítima a compensação da gratificação anual pela gratificação natalina, uma vez que os acordos coletivos consignavam o pagamento de uma gratificação de Natal e um acordo celebrado entre o Governo Federal e a Federação Nacional dos Portuários, em 1962, previa que “as gratificações que estivessem sendo pagas, a título de gratificação de Natal, seriam compensáveis para efeito da Lei nº 4.090/62”. Chegava ao fim a discussão. É possível ler a íntegra do processo.
O dissídio coletivo nº 86/63 é um dentre os milhares de processos que fazem parte do acervo do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região e que estão sendo, paulatinamente, disponibilizados no Centro de Memória Virtual do TRT-2. Mensalmente, é possível conferir novos processos, documentos administrativos, fotografias, objetos, materiais audiovisuais e muitas histórias. Os materiais são localizados, catalogados e disponibilizados para acesso ao público. A leitura de cada um deles revela um pedaço da história não só da 2ª Região, mas do Brasil. Disponibilizá-los é dar transparência e publicidade à história do TRT-2. É também uma forma de valorizar as lutas dos trabalhadores brasileiros ao longo dos tempos.

Memórias Trabalhistas é uma página criada pelo Centro de Memória do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, setor responsável pela pesquisa e divulgação da história do TRT-2. Neste espaço, é possível encontrar artigos, histórias e curiosidades sobre o TRT-2, maior tribunal trabalhista do país.
Acesse também o Centro de Memória Virtual e conheça nosso acervo histórico, disponível para consulta e pesquisa.
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