No dia 16 de janeiro, comemora-se o Dia do Cortador de Cana-de-açúcar, uma categoria de trabalhadores com a qual os habitantes das grandes metrópoles têm pouco contato, mas que está relacionada a uma atividade profissional ainda presente em muitas cidades do país.
Quem passou a infância em cidades do interior paulista deve se lembrar de ver os ônibus apinhados de gente, com o letreiro “RURAIS” em sua lateral, levando esses trabalhadores para as lavouras nos primeiros horários da manhã, para trazê-los de volta no final do dia. Também deve se recordar da fuligem de cana que sujava os quintais e as roupas no varal, resultado da queimada das plantações, prática já em desuso em alguns estados.


Hoje, tal atividade tem dado lugar ao corte mecanizado, que gradualmente substituiu o corte manual no estado de São Paulo, que perfaz apenas 3% da colheita total. Contudo, em estados da região Norte e Nordeste, essa atividade ainda representa mais de 76% das colheitas realizadas e frequentemente é motivo de atuação tanto da Justiça do Trabalho quanto do Ministério Público do Trabalho.
Trabalho na ponta do facão
Trabalho estigmatizado, ligado às populações mais pobres e menos escolarizadas, é caracterizado pela rotina extenuante, que exige preparo físico e tolerância a condições de trabalho insalubres. A maioria das pessoas pouco sabe sobre o processo de colheita manual da cana realizado por esses trabalhadores, e do suor (e muitas vezes do sangue) que é derramado nos canaviais do país, mas conhece muito bem a importância do etanol na produção de combustíveis e do açúcar na fabricação de alimentos, os dois principais subprodutos da cana-de-açúcar.




Durante décadas, o TRT-2 foi responsável por receber e julgar ações individuais e coletivas relativas ao trabalho no campo. Contudo, a partir de 1986, com a criação do TRT-15, a responsabilidade pela maior parte dessas ações passou a ser do novo Regional, tendo em vista que as lavouras de monocultura do estado já se encontravam localizadas longe da capital e de sua zona metropolitana.

Podemos encontrar, no entanto, no acervo histórico do TRT-2, processos das décadas de 1960 e 1970 que representam algumas das reivindicações e lutas desses trabalhadores rurais pelos seus direitos, alguns deles básicos. São pedidos que ilustram as condições precárias de trabalho no campo, em décadas passadas. Situação que ainda persiste nos dias de hoje, mesmo em tempos de intensa mecanização e de maior acesso à informação.
Resgatar a história por trás de alguns desses processos permite demonstrar a importância desses trabalhadores para o desenvolvimento da economia do estado de São Paulo e do Brasil e como sempre foram, e ainda são, vítimas do descumprimento das leis trabalhistas e da desvalorização de tal atividade. A Justiça do Trabalho e seu órgão irmão, o Ministério Público do Trabalho, foram atuantes e ainda hoje são um dos poucos portos seguros para a defesa dos direitos dessa categoria.
Lutas por direitos e dignidade
Temos no acervo histórico do TRT-2, dissídios coletivos da década de 1970 suscitados por sindicatos de trabalhadores rurais de diversas cidades do interior e oeste paulista, nos quais constam reivindicações pelo cumprimento de questões básicas, que soam até mesmo irreais aos olhos de um trabalhador urbano atual.
No recorte de uma década, em cidades como Cravinhos, Sertãozinho, Araraquara e Limeira, os trabalhadores reivindicavam caminhões com bancos e cobertura, além de motoristas habilitados, tendo em vista que eram transportados para as lavouras nos precários e famigerados “pau de arara”.
Ainda, um pedido recorrente, era pelo fim de uma prática comum dos empregadores de reter os documentos dos trabalhadores. Era praxe não devolver a carteira de trabalho e encontramos relatos em dissídios da retenção, até mesmo, de documentos de identidade e de previdência. Uma forma de controle muito praticada nas lavouras nos idos de 1960 e 1970. Além disso, tanto contratos de trabalho quanto contracheques, não eram fornecidos aos trabalhadores, sendo necessárias decisões judiciais para que as segundas vias desses documentos fossem disponibilizadas (por exemplo, ver o acórdão dos dissídios coletivos nº 126/1976 e nº 50/1976).


O dissídio coletivo nº 4 de 1975 nos apresenta uma faceta da realidade do trabalho rural no interior do estado de São Paulo na década de 1975. Nos autos o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Cravinhos traz pedidos, que, segundo a legislação da época, já eram considerados direitos básicos desses trabalhadores. Solicitam, além de casos similares aos citados acima, outros, como: a isenção do desconto do transporte dos trabalhadores rurais para o local de trabalho, que onerava em demasiado os baixos salários da categoria e o fim de uma prática, no mínimo injusta, que era o desconto dos dias nos quais as condições climáticas impediam o trabalho no campo, mesmo quando o trabalhador ficava à disposição do patrão. Ou seja, o sujeito pagava pelo transporte até a lavoura e ao chegar lá, se uma eventual chuva não permitisse o trabalho, ficaria ali esperando a vontade de São Pedro, tendo o dia descontado do seu salário.

É importante dizer que, desde 1962, o Estatuto do Trabalhador Rural (Lei nº 4.124 de 1962) já sistematizava os parâmetros e condições dos contratos de trabalho na agricultura brasileira. Essa espécie de CLT do campo, veio quase 20 anos depois da Consolidação das Leis do Trabalho, que regulava o trabalho urbano. Foi só a partir de então que o trabalhador rural teve assegurado seus direitos básicos, como carteira profissional e o consequente registro da relação de emprego, salário mínimo, jornada de 8 horas diárias e férias remuneradas.

Contudo, o Estatuto era pouco cumprido no campo, o que exigia a judicialização frequente para que decisões dos Tribunais do Trabalho obrigassem os empregadores a cumprirem questões básicas que já possuíam previsão legal.
Em 1973, a Lei nº 5.889 revogou o Estatuto do Trabalhador Rural e estendeu as disposições da CLT aos trabalhadores do campo, o que trouxe problemas a um novo tipo de trabalhador: o trabalhador volante, mais conhecido pelo termo “bóia-fria”, que é normalmente um morador das cidades, que passou a se deslocar para as plantações para trabalhar todos os dias e que presta serviços para empregadores diferentes. Tratado como temporário, portanto, não contemplado pela lei, não encontrava quem o respaldasse por ser considerado trabalhador não eventual. Foi só com a Constituição de 1988 que esses direitos foram unificados.


Uma análise panorâmica sobre os dissídios coletivos das décadas de 1960 e 70 permite vislumbrar como o coronelismo imperava nas fazendas e usinas do interior paulista, com práticas de controle e desrespeito aos trabalhadores do campo, em sua maioria empregados da colheita de monocultura, como o café, algodão, laranja e a cana-de-açúcar. Essa última, com a importância que o etanol assumiu na economia brasileira, nas décadas seguintes, ganhou a dianteira no uso dessa mão de obra, formada prioritariamente por trabalhadores pobres.
No caso de São Paulo, boa parte dos trabalhadores da cana foi formada por pessoas vindas de estados das regiões norte e nordeste. Migração que se intensificou nas décadas de 1970 e 1980, fomentada e agenciada pelos “gatos” (empresários clandestinos), que transportavam essas pessoas de forma precária até os estados do sudeste com a promessa de emprego e melhores condições de vida. Ao chegarem, depararam-se com as situações desumanas dos canaviais, o preconceito e extremas dificuldades econômicas.

Tais condições geraram diversas greves na década de 1980, algumas delas de grandes proporções. Uma das mais significativas foi o “Levante de Guariba”, em 1984, quando milhares de canavieiros cruzaram os braços diante do aumento das exigências de produção das Usinas, com contrapartidas financeiras mínimas a esses trabalhadores. Apesar da repressão violenta das forças policiais, os trabalhadores conseguiram um acordo favorável aos seus pedidos.

Um passado não tão distante
A última década trouxe um intenso processo de mecanização do corte de cana-de-açúcar no estado de São Paulo, extinguindo milhares de postos de trabalho, que hoje correspondem a apenas 3% da produção paulista de cana. Tais mudanças foram consequência direta do Decreto Estadual nº 47.700, de 11 de março de 2003, que regulamentou a Lei nº 11.241, de 2002 e definiu, principalmente por motivos ambientais, a extinção gradativa do emprego do fogo nas lavouras de cana-de-açúcar até 2021, para as áreas de menos declive, e até 2031, para as áreas de maior declive. Contudo, o Protocolo Agroambiental do Estado de São Paulo, em 2007, adiantou esses prazos respectivamente para 2014 e 2017, o que acelerou o processo de mecanização e extinção do corte manual.


A queimada, prática tão comum e que até anos atrás podia ser presenciada em cidades do interior, com seus horizontes em chamas e a densa fuligem no ar, era necessária para facilitar o corte manual, tendo em vista que a folhagem da cana-de-açúcar corta como uma navalha e aumenta em demasiado o peso das canas, sem levar em conta que as lavouras são lugares de habitação de animais peçonhentos, que colocam em risco a vida dos lavradores.
‒ É mais difícil cortar cana queimada ou na palha?
‒ Na palha.
‒ Por quê?
‒ Porque a cana na palha, tem que limpar a palha, tem que tirar a palha, puxar do lugar do monte, tem muito joçal, é um espinho pequenininho, penetra muito no corpo da gente… na cara, nas mãos, e dá muita coceira.
A palha corta a gente, onde passa a folha ela corta. Então, fica mais difícil do que a cana queimada. Porque a cana queimada, você abraça ela e corta. O único problema é que ela suja a roupa mas não te machuca. A outra machuca, pega o olho na ponta, é perigoso ficar cego. (Depoimento de cortador de cana da região de Araraquara).
Com a proibição gradativa dessa técnica, o corte manual se tornou inviável, o que gerou a extinção de milhares de postos de trabalho e o agravamento da situação financeira de muitos trabalhadores, que tinham no corte de cana seu ganha pão.

Apesar dessa tendência, a profissão de cortador de cana ainda persiste em algumas usinas de São Paulo e principalmente dos estados das regiões Norte e Nordeste, nos quais 76% da colheita ainda é feita de forma manual.
A rotina de um cortador de cana-de-açúcar continua a ser uma das mais extenuantes no mundo do trabalho. Em média, um trabalhador corta cerca de 13 toneladas por dia a golpes de facão, tendo que carregar feixes de 15 kg debaixo de sol intenso, rotina que leva à invalidez precoce e a danos físicos irreversíveis.

Além disso, ainda persiste o pagamento dos cortadores por produção, o que gerou um quadro nefasto nos canaviais, de mortes por exaustão, vício em drogas e recordes pessoais de mais de 30 toneladas em um único dia por parte de alguns cortadores.
Nos anos 2000, as mortes por exaustão no corte de cana-de-açúcar atingiram patamares alarmantes, exigindo que o Ministério Público do Trabalho passasse a atuar intensivamente no estado de São Paulo e em outras regiões do país, para fiscalizar as condições de trabalho no campo. E nesse sentido tornou-se fundamental a atuação da Justiça do Trabalho para coibir tais práticas.


Em 2016, em passado não tão distante, a 3ª Turma do TRT da 15ª Região condenou uma empresa da cidade de Andradina a não vincular os salários dos cortadores à quantidade de cana cortada, sob o argumento de que essa prática submeteria os trabalhadores a condições extremas de trabalho. Em seu voto, o desembargador Lourival Ferreira dos Santos foi taxativo:
“Em decorrência do preço baixo que é remunerado o metro da cana, o trabalhador se vê obrigado a fazer longas jornadas de trabalho para receber um salário que dê ao menos para sua subsistência. E, se isso não bastasse, as próprias metas fixadas pelas usinas acabam por fazer com que o trabalhador se submeta a uma jornada de labor intensa e longa para atingir as metas, sob pena de não ter a garantia de ser contratado na próxima safra”.
Processo 0001892-11.2012.5.15.0056
Tal decisão acompanha uma posição frequente dos Tribunais do Trabalho, que desde os anos 2000 passaram a condenar empresas que adotam tal sistema de pagamento, tendo em vista o aumento gradual das mortes por exaustão.
Porém, a mecanização ainda não atingiu todas as regiões do país, e estados do Norte e Nordeste ainda realizam a colheita de cana manualmente, o que demanda ainda mais a atuação de órgãos de fiscalização e do judiciário.
Um estudo realizado pelo sociólogo Lúcio Vasconcellos de Verçoza traçou o perfil dos cortadores de cana no estado das Alagoas e revelou um contexto preocupante de mortes por extenuação e desgaste precoce desses trabalhadores. Sua tese: “Os saltos do ‘canguru’ nos canaviais alagoanos”, já possui uma dimensão de denúncia no próprio título, já que “canguru” é o termo utilizado pelos cortadores para descrever o quadro de cãibras por todo o corpo, resultado de um distúrbio hidroeletrolítico ligado à exaustão física (a íntegra da tese pode ser acessada aqui). De braços encolhidos, como um canguru, caídos no chão sem conseguir chamar por socorro, alguns chegam a morrer nessas condições.

Em São Paulo o “canguru” é mais conhecido como “birôla”, e também ataca esses trabalhadores, que preocupados com seus ganhos, chegam a ultrapassar 30 toneladas de cana colhida em um único dia. A permanência dessas condições nos deixam um alerta, pois o corte manual é uma realidade brasileira e existem previsões da volta dessa modalidade em muitas usinas, já que métodos de manejo manual, como a meiosi, tem ganhado evidência na agricultura brasileira, diante da previsão de esgotamento da terra em muitas regiões do país.
Tal contexto evidencia a importância da atuação da Justiça do Trabalho e do Ministério Público do Trabalho na salvaguarda dos direitos desses trabalhadores, e nos mostra como aquela realidade de 40 anos atrás não está tão distante. Muitas vezes, o que está distante é nosso entendimento das condições de trabalho daqueles que integram uma parte da cadeia produtiva que parece não nos atingir diretamente.
Lembro-me de minha infância no interior de São Paulo, na cidade de Leme, que ainda hoje é cercada pela cana-de-açúcar, e de como as crianças saíam nos quintais ou nas ruas para “caçar palha de cana”. Quando ocorriam as queimadas dos canaviais, essa fuligem descia do céu espiralando, e as crianças brincavam de pegá-la antes de ela cair no chão. À distância, desconhecíamos o que ocorria nos canaviais e pouco nos importávamos. Esse descaso, “privilégio” das crianças, foi também a atitude da sociedade brasileira durante muitos anos em relação às condições desses trabalhadores. Por isso a importância da atuação da Justiça do Trabalho no respaldo a esses trabalhadores, que durante décadas sustentaram em seus ombros o desenvolvimento econômico do nosso país.

Memórias Trabalhistas é uma página criada pelo Centro de Memória do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, setor responsável pela pesquisa e divulgação da história do TRT-2. Neste espaço, é possível encontrar artigos, histórias e curiosidades sobre o TRT-2, maior tribunal trabalhista do país.
Acesse também o Centro de Memória Virtual e conheça nosso acervo histórico, disponível para consulta e pesquisa.
Achei a matéria muito interessante e rica historicamente, mostra a Justiça do Trabalho pacificando a relação de trabalho de décadas atrás entre usina, coronéis e trabalhadores rurais cortadores de cana, neste documentário relata as condições desumanas a que estes trabalhadores muitas vezes eram submetidos, necessitando da intervenção da Justiça do Trabalho para amenizar o sofrimento destes trabalhadores como mostra a reportagem.
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Obrigado pela leitura e comentário, Valdinei. De fato, essa categoria de trabalhadores é uma das que mais tiveram seus direitos desrespeitados historicamente. E, apesar da mecanização do corte em São Paulo, essa é ainda a realidade de muitos cortadores pelo Brasil. Há muito o que ser feito!
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