Em 8 de agosto de 2020 foi finalizada a implantação da nova plataforma eletrônica para rastreamento e bloqueio de ativos de devedores do Judiciário Nacional, o SisbaJud (Sistema de Busca de Ativos do Poder Judiciário), elaborado por meio de um Acordo de Cooperação Técnica entre o Conselho Nacional de Justiça, o Banco Central e a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional . Além de novas funcionalidades e recursos, o SisbaJud tem como objetivo trazer maior celeridade à execução nos autos trabalhistas, fase tão complexa e importante da tramitação processual.

Agora que o Sisbajud completa um mês de implantação, em substituição ao BacenJud, nosso companheiro de longa data, cabe-nos refletir sobre uma mudança em curso. Preservar a memória da Justiça do Trabalho perpassa manter o registro não somente da trajetória de pessoas, das transformações legais ou dos impactos de processos e decisões, mas também preservar a memória dos saberes e práticas, aquele “como era feito”. Em suma, como procedimentos prosaicos, que permitem que seja feita a justiça, se transformam e impactam a vida de servidores, magistrados e, principalmente, dos jurisdicionados.
Há pouco presenciamos a migração dos autos físicos para o meio eletrônico e, há cinco anos, quem estava nas unidades de primeira instância vivenciou as dificuldades e, em alguns casos, as resistências – de servidores, magistrados, advogados e jurisdicionados – em lidar com o PJe-JT (Processo Judicial Eletrônico da Justiça do Trabalho) e com os processos em “PDF”, os certificados digitais, as “ids” dos documentos, com as novas rotinas de juntadas, despachos, audiências… Daqui cinco anos é bem possível que o trabalho com os processos físicos, em papel, seja lembrado com certa nostalgia um pouco romântica, mas poucas saudades, já que o PJe-JT trouxe praticidade e rapidez ao andamento processual, e tem surtido efeitos positivos na celeridade e produtividade da Justiça do Trabalho, além de melhores condições de trabalho para os profissionais que atuam no Judiciário.

Pensar nesses efeitos a médio prazo, em um momento em que mais uma ferramenta de trabalho da Justiça Trabalhista é substituída, permite a reflexão e o resgate do histórico de implantação do BacenJud. Quando elaborado e implantado no Judiciário Nacional, em 2001, também iniciou uma transformação nos trâmites processuais, gerou celeumas e debates jurídicos, alterou as rotinas de trabalho de magistrados, servidores e advogados. Assim como o SisbaJud, tinha como intenção trazer celeridade ao andamento processual, mas em um momento no qual a Internet se popularizava e a tecnologia da informação ganhava espaço nas rotinas de trabalho da Administração Pública e da nossa sociedade em geral.
Não é de hoje que a fase de execução é tratada como um dos principais gargalos do Judiciário Nacional, seja pela complexidade dos procedimentos e da legislação correlata, seja pela dificuldade de encontrar valores e bens, ou mesmo pela demanda processual gigantesca. É nesse momento que o cumprimento dos direitos se faz. Ou seja, apesar das ações na Justiça do Trabalho terem objetos diversos, que podem muitas vezes não resultarem em valores a serem pagos, no final das contas a grande parte se trata de restituir à parte aquilo que lhe é de direito em forma de pecúnia (dinheiro mesmo).

Por isso, as inovações e mudanças (porque nem toda mudança é uma inovação, algumas podem ser retrocessos, retornos a antigos problemas, por isso a importância de conhecer a história da instituição, para que os mesmos erros não sejam cometidos) nas ferramentas e recursos disponíveis à Justiça para o andamento das execuções, sempre trouxeram impactos estruturais na eficácia da Justiça. Esse texto busca resgatar um pouco do contexto no qual o BacenJud foi implantado na Justiça do Trabalho, quais eram as rotinas que antecederam sua chegada, e quais foram os principais debates em torno da nova ferramenta. Como já mencionado, a intenção é resgatar um pouco a memória de como era feito, sem, de forma alguma, querer esgotar o debate jurídico em torno da execução na Justiça do Trabalho, já amplamente abordado por juristas e magistrados. A proposta é fazer lembrar quem trabalhou no Judiciário antes das ordens eletrônicas de bloqueio, e aqueles que chegaram depois, e que nem imaginam como era esperar mais de dois meses pelo resultado de uma consulta. Afinal, atualmente, a espera não passa de dois dias.
A execução e as várias Certidões de Nascimento da Justiça do Trabalho
A Justiça do Trabalho, criada em 1932 pelo governo ditatorial de Getúlio Vargas (Decreto nº 22.132 de 25/11/1932), e prevista mais tarde pela Constituição Federal de 1934, era um órgão administrativo, vinculado ao Executivo (Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio), e por isso, tinha entre suas competências “dirimir questões entre empregadores e empregados, regidas pela legislação social” (art. 122), sem ainda ter o poder efetivo para executar suas sentenças. Em outras palavras, a Justiça do Trabalho conciliava e julgava, mas não tinha poderes para fazer cumprir, ou mesmo buscar o cumprimento desses direitos por meios executórios.

Por isso, o decreto de 1932 em seu artigo 21 (22.132 de 25/11/1932) definia (no português da época) como a parte deveria proceder em caso de não cumprimento dos termos da decisão do processo:
“Si o acôrdo ou a decisão passada em julgado nâo fôr cumprido, o funcionario incumbido de receber a queixa, a requerimento do interessado, extrairá cópia autentica do termo da respectiva audiencia, que valerá como titulo de, divida líquida e certa para a execução judicial.”
Essa execução judicial, prevista pela legislação da época não seguiria na Justiça do Trabalho, mas em outros órgãos da Justiça, como definia o artigo 23 do mesmo decreto:
“A execução judicial das decisões das Juntas será provida, perante o fôro federal, na Capital Federal, ou onde houver, pelos procuradores do Departamento Nacional do Trabalho, e nos Estados ou Territorio do Acre, pelo representante do Ministerio Publico Federal. Tais execuções serão processadas, independente de custas, pagas, afinal, pelo vencido”.

Já em 1939 temos o Decreto nº 1.237 de 1939 (02/05/1939) que dispôs sobre a organização da Justiça do Trabalho na forma de Conselhos Regionais, efetivando-se somente em 1º de maio de 1941, quando Getúlio Vargas fez seu famoso discurso oficial de implantação dos CRTs. Mesmo sendo um marco dos primeiros anos de existência, a implantação realizada em 1941 ainda mantinha a JT como um órgão do Executivo.
Como podemos ver, a Justiça do Trabalho possui várias certidões de nascimento, e entre elas a CLT, instituída em 1943, que além de reunir a esparsa legislação trabalhista promoveu a organização da execução no âmbito do processo do trabalho, já que a consolidação também trouxe a própria estruturação do Direito Processual do Trabalho. A perspectiva da execução, como fase posterior à de cognição, já aparecia no CPC de 1939, que muito orientou as definições contidas na CLT.

Mesmo com a CLT em vigor, a Justiça do Trabalho continuava sem as competências para executar, questão que foi solucionada com o Decreto-lei nº 8.737 de 1946, que veio para definitivamente estabelecer as estruturas que vigoram até os dias de hoje, com o TST, Tribunais Regionais, e a definitiva vinculação da Justiça do Trabalho ao Judiciário Nacional, e, mais que isso, definir agora as competências para executar. O decreto definiu a redação do artigo 712 da CLT, que passou a trazer, em seu item F, expressamente a competência das secretarias das Juntas de Conciliação:
f) promover o rápido andamento dos processos, especialmente na fase de execução, e a pronta realização dos atos e diligências deprecadas pelas autoridades superiores.

Como relatou um dos mais importantes advogados trabalhistas da história, José Granadeiro Guimarães, em uma entrevista concedida ao TRT-2 no ano de 2002, essa foi uma inovação tremenda para a época, pois simplificava e centralizava o processo do trabalho em um único órgão, tornava a vida dos jurisdicionados mais fácil, pois não precisavam mais entrar com mais um “processo” para poder executar os valores reconhecidos. Além disso, reconhecia a Justiça do Trabalho como um ramo da Justiça, com plenos poderes para fazer cumprir as suas decisões.

“Só a partir de 46 é que então, aí as próprias execuções eram realizadas na Justiça do Trabalho. Antes, a Justiça do Trabalho proferia uma sentença mas não podia executar a sua própria sentença. Elas eram executadas na Justiça Comum… Então, por um período a Justiça do Trabalho sofria uma capite diminutus muito grande, mas a partir de 46, a coisa tomou um rumo mais sério.”
José Granadeiro Guimarães, advogado trabalhista, falecido em 2008.
Buscando meios de se fazer justiça
O Direito Processual do Trabalho é matéria complexa, cheia de meandros, que exigem conhecimento aprofundando por parte de magistrados, advogados e servidores, e que ao longo de décadas sofreu alterações. Até por isso temos tantas obras voltadas a esse tema, e a execução continua sendo a fase mais trabalhosa e complexa de um processo trabalhista. Contudo, para além das determinações legais, existe uma dimensão do andamento processual, que, apesar de também possuir suas previsões legais e ser regulada por elas, tem relação com ferramentas, formas de fazer e práticas que permitem que essa legislação seja aplicada.
Se por um lado tais mudanças, em 1946, trouxeram uma simplificação para os jurisdicionados, por outro, trouxe complexidade para a Justiça do Trabalho, que, a partir daquele momento, precisou se organizar para encontrar os meios para executar, ou seja, encontrar bens e valores, realizar leilões e pagamentos.

“É em 1946 com a Nova Constituição, e com o decreto-lei de 9.797 de 1946 que as coisas mudam. 1946 é um dos primeiros marcos da Justiça do Trabalho, pois vai alterar estruturalmente seu funcionamento, competências e carreiras, e traz a execução para o bojo da Justiça Trabalhistas, que a partir de então precisa estabelecer seus próprios recursos para encontrar formas de fazer cumprir suas sentenças.”
José Pitas, desembargador do Trabalho aposentado do TRT-15.
Nos dias de hoje, recursos tecnológicos e informacionais já estão incorporados nas rotinas do Judiciário, e se pode dizer que, com a digitalização integral dos processos, tornaram-se a base da Justiça. Não somente o PJe, mas todas as ferramentas que aos poucos estão sendo integradas a ele, constituem toda uma estrutura, que difere em muito daquela existente na década de 1940, quando a Justiça do Trabalho surgiu e recebia suas competências para executar os processos. E não somente nesse passado tão longínquo dos primórdios, pois apesar das transformações legais e administrativas pelas quais a Justiça do Trabalho passou ao longo do século XX, formas mais sofisticadas e eficazes de localização de bens e ativos financeiros começaram a ser implantadas somente no início dos anos 2000.
Até então, a execução dependia em muito dos ofícios em papel e do trabalho dos oficiais de justiça. Isso não significa que que até os dias de hoje ainda não se dependa da competência desses servidores, mas basta uma olhada no acervo histórico do TRT-2, para encontrarmos nos processos das décadas de 1960, 1970 e 1980, a regularidade nas formas de execução e satisfação dos créditos do autor.
São recorrentes as penhoras de bens no local de moradia dos sócios, ou nas sedes das empresas. De carregamentos de sabão a máquinas de escrever, bens eram avaliados e penhorados, o arresto era feito, depois encaminhados para leilão e arrematados, um mecanismo que surtia e ainda surte efeito em muitas ações, mas que é tanto demorado, complexo, e, em muitos casos, não dá conta de satisfazer o crédito exequendo. Além disso, envolve muitas situações nas quais os sócios das empresas executadas já se encontram em situação financeira precária. A oficial de justiça aposentada do TRT-2, Kaoru Akahoshi, em relato cedido em 2018 ao Centro de Memória do TRT-2, conta um pouco dessa experiência de atuar na Justiça do Trabalho nas décadas de 1980 e 90:

“Não era tão ruim ser oficial de justiça aqui. No criminal a gente paga todos os pecados do mundo. Aqui, não. Ninguém criava muito caso. As empresas já não tinham nada. Não tinham bens. Íamos na casa dos sócios para penhorar cacarecos. Tinha geladeira, forno… Tinha carro, mas estava em nome de terceiros.
(…)
Oficial de justiça nunca leva uma notícia boa pra ninguém. O que eu não gostava era ir na casa de sócio. Que tristeza. Tinha uns que estavam bem velhinhos. Porque quando você vai na casa do sócio, ele não está. Quem atende? A esposa e os filhos. Eles choravam…”
Kaoru Akahoshi, servidora do TRT-2 de 1978 a 1995.
Uma dimensão curiosa dos processos das últimas décadas do século XX é a constante penhora de linhas telefônicas. Soa estranho nos dias de hoje, quando os telefones celulares são de fácil acesso para grande parte da população, pensar na penhora de uma linha telefônica, mas o caso é que até o início dos anos de 1990, linhas telefônicas eram um patrimônio de acesso restrito dadas as limitações da estrutura de telefonia no país. Com a privatização dos serviços, o investimento massivo do Estado e também, com a inovação tecnológica dessa área, aos poucos ter acesso ao telefone se tornou algo mais barato e fácil, ainda que muitos sofram com a qualidade e os custos do serviço.
Nos autos do processo trabalhista nº 2.180 de 1975, que tramitava da 25ª Vara do Trabalho de São Paulo, uma linha telefônica foi penhorada e leiloada para pagamento de dívida trabalhista, pela bagatela de Cr$ 19.200, o que, em uma conversão simples, daria cerca de R$ 4.000, o equivalente a quatro salários mínimos atuais. Considerando que em 1975 o salário mínimo era de Cr$ 532,80, uma linha telefônica equivalia a mais de 36 vezes esse valor, e podia ser considerado um pequeno patrimônio. Como dito, fora esses casos corriqueiros, que hoje soam curiosos, o recurso mais comum utilizado na Justiça do Trabalho era a penhora e arresto de bens das sedes das empresas ou nas residências dos sócios executados.

Em um caso, no processo nº 2.474, de 1976, que tramitava na 17ª Junta de Conciliação e Julgamento de São Paulo, os advogados do autor solicitaram nos autos a determinação de expedição de ofícios ao Banco Central, na tentativa de localizar informações sobre contas bancárias dos executados. Era o ano de 1995 e a parte ainda buscava meios de satisfazer seu crédito após quase 20 da prolatação da sentença. Os advogados usaram como base de seus argumentos os trâmites de outro processo (de nº 1.475 de 1980, que tramitou na 20ª JCJ de São Paulo), no qual foram localizados valores em contas do Unibanco e Banco do Brasil, que permitiram a quitação de parte da execução.


Contudo, existia outro obstáculo a essa prática. Além de toda a demora na tramitação dos ofícios, o fornecimento de informações bancárias demandava a quebra do sigilo bancário, medida radical e extrema, que até os dias atuais é tratada com cautela pelos magistrados. Quando era solicitada a informação, a resposta continha a descrição dos dados da conta, algumas movimentações e os saldos, uma clara violação da intimidade e do sigilo. Por isso, dificilmente um magistrado deferia esse tipo de pedido se não tivesse indícios sólidos da possibilidade de sucesso dessa medida. Foi nesses termos que o magistrado da 17ª JCJ, Benedito Valentini, indeferiu o pedido das partes.

Em uma pesquisa panorâmica, foram poucos os casos nos quais aparece a efetiva penhora de valores em contas bancárias. A quantidade vai crescendo conforme a informatização dos próprios bancos aumenta. Ou seja, quanto mais integrada a rede bancária e o sistema financeiro, e maior a informatização das ferramentas de controle do Banco Central, mais se tornavam efetivas as tentativas de bloqueio realizadas por meio de ofícios em papel e mandados, ainda que muito aquém da atual – e enfrentando os entraves jurídicos da época.
O início da parceria com o Banco Central e alguns embates jurídicos
Desde a década de 1980 o Banco Central do Brasil já vinha estabelecendo mecanismos de auxílio ao Judiciário, mas somente no ano de 1992 que foi criada uma equipe específica para dar tal apoio e as primeiras solicitações de informações bancárias começaram a ser encaminhadas ao BC. Com a constituição de um equipe voltada a essas atividades, tal prática se tornou regular. Em informações fornecidas pelo Banco Central, em 1993, o Judiciário tinha enviado cerca de 3.200 solicitações; já em 1999, esse número alcançava quase 58 mil solicitações. Em seis anos, o volume de solicitações de informações bancárias tinha aumentado 18 vezes.

Novos recursos precisavam ser criados, pois o Judiciário e principalmente as partes dos processos tinham descoberto um meio eficaz de alcançar o cumprimento das sentenças. Cada vez mais os juízes enxergavam as potencialidades dos bloqueios bancários. Por isso, em 1998 foi criada a primeira ferramenta informatizada para tal fim, o Sistema Divin, que funcionava no encaminhamento dos ofícios recebidos em papel de forma eletrônica ao sistema bancário. Em suma, era uma ferramenta de comunicação utilizada pelo Banco Central para encaminhar aos bancos as solicitações recebidas do Judiciário, o que agilizava a comunicação entre um dos elos dessa cadeia de busca de ativos.
Nossa colega Sônia Fernandes, diretora da 43ª VT do Trabalho de São Paulo, e servidora desde 1993, nos conta como eram realizadas as buscas por informações bancárias e as tentativas de penhora em conta antes da implantação da primeira versão do BacenJud:

“A gente mandava um ofício para o Banco Central e o Banco Central mandava uma ordem para todos os bancos, para enviar a resposta para a vara. Chegavam milhares de respostas e nós brincávamos que era “cultura inútil”, porque existiam bancos como o Mappin e outros que a gente nunca tinha ouvido falar. Apareciam contas, claro, com saldo negativo. Aí, quando vinha banco Itaú dizendo que tinha dinheiro na conta, expedia-se um mandado de penhora em conta corrente e o oficial ia lá. Só que, muito esperto, o gerente do banco, muitas vezes, avisava o cliente que tinha pedido de informação do Banco Central e que provavelmente viria a penhora, aí o executado tirava o dinheiro da conta.”
Sônia Maria Garcia Fernandes, servidora do TRT-2 desde 1993.
Já no ano de 1999, o Banco Central iniciava as primeiras providências para a elaboração de um sistema informatizado de busca por ativos financeiros que pudesse resolver o gargalo que se formava na execução trabalhista, e que viria a ser a primeira versão do BacenJud. Em paralelo, funcionava todo um setor do Banco Central voltado ao auxílio ao Judiciário nos trâmites de execução. Nesse mesmo ano, a legislação também buscava se adequar às inovações em curso e foi publicada a Lei nº 9.800, de 1999, que permitiu o uso de mecanismos de comunicação eletrônica, principalmente via Internet, para a realização de atos processuais, ainda que a lei fosse vaga e genérica. Porém, o uso das tecnologias de informação ainda causava debates no meio jurídico e, internamente, na Justiça do Trabalho.
Uma celeuma jurídica na era das antenas parabólicas e celulares via satélite
Em julho de 2001, em um Pedido de Providência protocolado pelo Banco do Brasil (Processo nº TST-PP-762.513/2001.0), o ministro Francisco Fausto Paula de Medeiros, então vice-presidente do Tribunal Superior do Trabalho no exercício da Corregedoria-Geral da Justiça do Trabalho, decidiu dar procedência ao autor da ação e determinar que fosse vedada aos juízes do trabalho a expedição de ordens judiciais que obrigassem gerentes de banco a realizar o bloqueio e a penhora de contas bancárias localizadas fora dos limites de atuação da Vara do Trabalho.
Aparentemente, antes da implantação do BacenJud, a rede bancária já estava toda conectada, e era possível a um gerente realizar o bloqueio de contas sediadas em agências de outras cidades, a tal penhora on-line. Essa prática era mais célere do que o instrumento usual de expedição de uma carta precatória solicitando que o juiz da localidade determinasse a penhora.
Diante das determinações do corregedor-geral do TST, o corregedor do TRT-2, o desembargador Gualdo Formica determinou, por meio do comunicado CR nº 45/2001, que os magistrados de primeiro grau não mais expedissem mandados de penhora de valores em contas pertencentes a agências bancárias fora de sua jurisdição, além de proibir a penhora de crédito futuro.


“3. Por tais razões, declaro procedente o pedido de providência e solicito aos eminentes Juízes Corregedores Regionais de todas as unidades de Segundo Grau que, no âmbito da jurisdição do Tribunal Regional onde exercem a função corregedora, atuem junto às Varas do Trabalho determinando aos magistrados de Primeiro Grau de Jurisdição que se abstenham de determinar aos administradores e gerentes de agência do Banco do Brasil S/A o cumprimento de ordem judicial contendo mandado de bloqueio e penhora on line de numerário encontrado em conta-corrente de entidade executada fora dos limites territoriais da Vara do Trabalho respectiva, recomendando aos Juízes da execução o estrito cumprimento da legislação vigente, compreendida no texto dos arts. 650, 651, 653 da CLT, 200, 201, 658, 667, inciso II, do CPC, bem como a necessidade de se obedecer a regra estabelecida no texto do art. 655 do CPC, no qual não está incluída a penhora de crédito futuro”.
Comunicado CR nº 45/2001 de 26 de julho de 2001.
Apesar das inovações tecnológicas da época, principalmente a Internet, a Justiça Trabalhista ainda enfrentava dificuldades em assimilar esses recursos e torná-los compatíveis com a legislação vigente. O juiz localizava contas bancárias do executado por meio dos ofícios encaminhados ao Banco Central, mas, se elas fossem de agência fora de sua competência, era vedada a execução por intermédio de um gerente local. Além disso, era vedada a penhora do tal crédito futuro, que passava a ser uma das modalidades de operação bancária mais utilizadas pelas empresas, já que a massiva informatização dos sistemas de crédito no final dos anos 1990 ampliaram as compras via cartão de crédito. Não existia previsão legal para o bloqueio desse crédito, o que deixava os juízes com o queijo, mas sem nenhuma faca à mão.
Bem, tal decisão não passou sem uma análise crítica por parte dos juízes de primeiro grau. Na edição de nº 42 (setembro/outubro de 2001) do Jornal da Amatra-2, o juiz do trabalho do TRT-2, Marcos Neves Fava (atualmente é juiz titular da 89ª VTSP), que na época era vice-presidente da associação, publicou longo artigo analisando a decisão do Corregedor-geral do trabalho e se posicionando contrário a ela, apontando seus impactos na tramitação das execuções nas varas do trabalho. Intitulado “A quem serve a execução de título judicial trabalhista?”, o artigo também é um retrato muito interessante daquele momento histórico, no qual a Internet estava de popularizando e gradualmente integrando as rotinas de trabalho dos órgãos públicos como principal meio de comunicação. Além, portanto, da dimensão jurídica apontada no artigo, que nos é importante – não para decidir quem estava com a razão, mas para registrar a oposição de diferentes pontos de vista -, também são mobilizados argumentos que recorrem a imagens que podem ser até enigmáticas para aqueles que não viveram suas infâncias e adolescências nas décadas de 1980 e 1990.

Um dos argumentos de Marcos Fava, mais jurídico e técnico, era que o Banco do Brasil, antes de tudo, teria adotado instrumento processual inadequado no caso julgado no TST, o Pedido de Providência. Além disso, afirmava que o BB estaria defendendo direito alheio diante do Judiciário, ou seja, o patrimônio de seus correntistas e não o seu próprio, tentando limitar o poder dos juízes de cumprirem suas sentenças, utilizando a própria estrutura da rede bancária existente.
Além desses aspectos jurídicos, Fava faz uma análise das transformações que a Internet e as novas tecnologias da informação estavam protagonizando naquele momento e como a Justiça do Trabalho precisava se alinhar a tais inovações.

“Já há meses vivendo no terceiro milênio, todos nós estamos acostumados ao encurtamento de distâncias que representam os meios tecnológicos de comunicação, tais como a parabólica, o telefone celular (por meio de satélites!) e a Internet.”
“De ‘concorde’, almoça-se em Nova Iorque, depois do café da manhã em Paris. Pela internet, a carta escrita agora é lida agora mesmo, na outra ponta do globo terrestre. Pelas estradas da informação, as infovias, o aplicador movimenta seu dinheiro em todas as bolsas do mundo, sem mexer-se da cadeira.”
Marcos Neves Fava, juiz do trabalho do TRT-2 desde 1996.
Parabólica, telefone por satélite e o moderno avião supersônico corcorde, que realizava as viagens comerciais muito mais rápido que o popular Boeing 747. Era um mundo que já estava conectado e que cada vez mais trazia as possibilidades de comunicação instantânea para o cotidiano do trabalho e dos modos de vida. Para Fava, não incorporar tais inovações no sentido de trazer celeridade à execução trabalhista era ir contra as tendências de uma época e, além disso, limitar a capacidade dos magistrados de fazerem cumprir suas sentenças. Como defendeu o magistrado: “A eficácia do processo executório constitui-se no âmago da prestação jurisdicional e, sem ela, de nada valem os atos pretéritos, as sentenças, os acórdãos bem fundamentados…”.


Além disso, o juiz faz uma crítica à persistência do recurso da Carta Precatória, em papel, carimbada e rubricada, quando toda a rede bancária já se encontrava conectada por operações realizadas on-line e os juízes de diferentes regiões em contato via e-mail. Complementa com uma colocação célebre, que depois seria citada por outros magistrados e juristas na defesa do futuro BacenJud:
“Conceber cabível a proibição de bloqueio on line e com amplitude nacional é dar ao juiz um burrico e uma pequena vara, para que ele tente perseguir os rebanhos de dinheiro que flutuam velozmente pelas estradas da Internet. Mais do que isto, a consequência da proibição em análise identifica-se com a anulação de um dos instrumentos mais eficazes no cumprimento das sentenças continentes de obrigação de pagar”
As colocações de Marcos Neves Fava publicadas como matéria de destaque no jornal da Amatra-2 são emblemáticas do quanto os juízes demandavam ferramentas adequadas para dar celeridade ao andamento processual. Não cabe tentar definir o mérito das posições em disputa, o interessante é o debate em si, e as questões levantadas, que ilustram o contexto no qual o Judiciário se via diante da necessidade de sofisticar seus métodos e assimilar as novas tecnologias.
Eis que chega a primeira versão do BacenJud
Como já mencionado, antes da implantação do BacenJud, as etapas de localização, bloqueio e penhora de valores das partes executadas demorava, quando em tempo ótimo, ao menos dois meses. A vara do trabalho expedia um ofício em papel ao Banco Central, que encaminhava a solicitação de informações ao sistema bancário, que, por sua vez, respondia por meio de carta às unidades do Poder Judiciário. Era um processo muito demorado, que tornava inócua muitas tentativas de bloqueio de valores, já que o executado tinha muito tempo para tomar ciência das providências tomadas e consequentemente movimentar valores e proteger seu patrimônio.
A primeira versão do sistema, o BacenJud 1.0, foi lançada em maio de 2001. No mesmo mês, a Justiça Federal e grande parte dos Tribunais de Justiça dos estados adotavam a nova ferramenta. Em março do ano seguinte (2002) foi a vez da Justiça do Trabalho, que, por meio de um convênio entre o Banco Central e o TST, permitiu que Tribunais do Trabalho pudessem assinar termos de adesão ao novo sistema. A Justiça do Trabalho não foi a primeira a adotá-lo, mas foi pioneira por incorporá-lo rapidamente às suas rotinas, tornando-se o órgão com maior números de ofícios eletrônicos expedidos. Aparentemente o burrico era trocado por um carro 1.0.

Com a versão 1.0 do BacenJud, as unidades judiciais puderam realizar solicitações de informação, bloqueios e desbloqueios de contas e de ativos financeiros de pessoas físicas e jurídicas, Também conseguiam informações sobre a existência de contas correntes em todo o Brasil. Mais uma etapa era acelerada, dessa vez a comunicação entre o Judiciário e o Banco Central.
Os pedidos passaram a ser realizados por um site de acesso restrito, que ficava disponível aos juízes após um cadastro junto ao Banco Central. Por meio dele eram encaminhados os ofícios eletrônicos ao Banco Central, que automaticamente eram repassados às instituições financeiras. O juiz encaminhava pelo sistema uma requisição para os bancos, intermediada pelo BC, e recebia a resposta por meio de ofício em papel.
O novo sistema só permitia a requisição e não dava acesso aos dados por dentro dele mesmo. O que causava certa morosidade, pois era preciso esperar a chegada da resposta, para só então juntá-la aos autos após cerca de 30 dias do pedido inicial.
A colega Sônia Fernandes, diretora da 43ª VT do trabalho, lembra que o juiz titular da junta na qual trabalhava se assustou quando pela primeira vez as respostas chegaram até sua casa. Como o cadastro no sistema era realizado pelo magistrado, com seus dados pessoais, as respostas dos ofícios eletrônicos eram endereçadas para a residência do juiz. Eram dezenas de correspondências enviadas por instituições financeiras de todo o país, que agora precisavam ser triadas e juntadas ao processo.
“Depois veio o BacenJud 1, que era muito complicado no começo, porque ele bloqueava a conta, não dava para depositar nem para sacar, e as informações iam todas para a casa do juiz, o dr. Ricardo (Apostólico Silva). A primeira vez em que aconteceu, ele ficou assustado. Veio e falou: ‘Sônia, tem mais de 30 correspondências de banco na minha casa’. Aí foi melhorando, mas a gente fazia o bloqueio”.
Apesar de facilitar o trabalho das varas, que não necessitavam mais expedir um ofício postal e aguardar que essa informação chegasse até as instituições financeiras, já que o novo sistema era mais ágil no envio de tais informações, ainda assim, a resposta de cada banco era feita por carta, enviada para o endereço pessoal do magistrado. Além disso, quando era emitida uma ordem de bloqueio, como relatado pela colega, a conta do executado ficava totalmente paralisada para quaisquer movimentações, situação que só chegava até o conhecimento do juízo após o recebimento da correspondência ou a manifestação da parte executada. Por isso, uma providência equivocada por parte da unidade judicial podia gerar transtornos gigantescos às partes da reclamação trabalhista.

O BacenJud 1.0 tinha resolvido apenas uma das etapas do processo de busca por ativos, que era o envio dos ofícios ao Banco Central, mas todo o restante continuava o mesmo. É difícil imaginar a espera por informações dos advogados e servidores, contudo, maior ainda era a demanda gerada para os bancos, que precisavam ter setores inteiros voltados para a resposta dos ofícios, que eram encaminhados pelos Correios.
Com a resposta, se localizados valores, o juiz precisava emitir um mandado para que o oficial de justiça fosse até o banco e realizasse o bloqueio da conta e a penhora dos valores, normalmente junto ao gerente da agência. Aí a coisa ficava ainda mais complicada, porque se a agência estivesse localizada fora da jurisdição da vara, era necessário emitir uma carta precatória, para que a penhora dos valores fosse realizada, já que o bloqueio já tinha acontecido. A celeuma do bloqueio tinha sido resolvida, mas a da penhora e a do arresto ainda permaneciam e mais uma etapa do processo já complexo de execução se mantinha, o que gerava ainda mais demora na efetivação dos direitos das partes.
Entretanto, a implantação do BacenJud 1.0 resolveu o impasse instalado sobre o bloqueio dos ativos em contas bancárias localizadas fora da jurisdição da unidade executante. Como já relatado, para conseguir bloquear ativos de contas existentes em outros estados, o juiz precisava expedir uma carta precatória, para que o juiz competente executasse a tentativa de bloqueio e penhora, já que a possibilidade de mobilizar o gerente local estava vedada pela Corregedoria-geral do Trabalho.
Apesar de a rede bancária já estar conectada, e ser possível a um gerente de uma agência em São Paulo bloquear ativos de uma conta sediada em Salvador, por exemplo, existiam os entraves jurídicos e uma expressa ordem do corregedor-geral vedando essa prática da penhora online. Quando veio o BacenJud 1.0, o juiz tinha essa possibilidade, por meio da própria ferramenta de realizar o pedido de bloqueio, diretamente, sem o intermédio de uma carta precatória, ou mesmo, da ação junto a um gerente local. Nesses termos o Comunicado CR nº 03/2002 tornou sem efeito o polêmico comunicado CR nº 45/2001, e ampliou o raio de ação dos magistrados na busca pelo cumprimento das sentenças.
“Considerando a celebração de Convênio de Cooperação Técnico-Institucional entre o Banco Central do Brasil e o Tribunal Superior do Trabalho para fins de acesso ao sistema Bacen Jud, que permite aos Tribunais signatários de termo de adesão, dentro das áreas de competência, encaminhar às instituições autorizadas a funcionar pelo BACEN ofícios eletrônicos que solicitam informações sobre a existência de contas de pessoas físicas e jurídicas, clientes do Sistema Financeiro Nacional, verifica-se que o presente pedido de providência não tem objeto.
Comunicado CR nº 03/2002 de 17 de maio de 2002”
O gerente de banco responsabilizado
Aqui cabe um parêntese sobre uma das grandes dificuldades encontradas pela Justiça do Trabalho no bloqueio e penhora de ativos bancários nos primeiros anos de funcionamento do BacenJud. É algo recorrente escutar de colegas aposentados e da ativa histórias relativas a situações em que a atuação do oficial de justiça era “dificultada” pelos gerentes dos bancos no momento de cumprir o bloqueio e penhora em conta, e de situações mais graves nas quais, ao perceber tal intenção, o gerente acabava por receber voz de prisão. E o caso de justiça virava caso de polícia.
Conversando com colegas aposentados e com alguns ainda na ativa, não pudemos coletar um relato sobre um caso específico ou vivenciado na década de 1990, que tenha chegado a essa situação limite, talvez um caso isolado tenha gerado um “causo” que foi contado à exaustão e passou a ser parte da memória coletiva dos servidores.
Contudo, pelas condições nas quais a penhora era feita, os boatos parecem muito mais reflexo da precariedade das ferramentas à mão, que deixavam margem para que executados pudessem esconder seu patrimônio. Então, não seria surpresa se um gerente mal-intencionado, no intuito de proteger seu cliente, tentasse de alguma forma protelar o bloqueio. Bastava um telefonema para o executado e um chá de cadeira no oficial para que o dinheiro mudasse de conta. A colega Sônia Fernandes explica um pouco das estratégias adotadas para verificar esse tipo de fraude:
“O que muitas varas começaram a fazer: nós verificávamos a hora que o Banco Central tinha passado a informação para o gerente do Banco e quando ele tinha respondido. Aí verificávamos: se o dinheiro foi sacado depois, o juiz responsabilizava o gerente”.
Aparentemente, tal prática era recorrente, tanto que em 2003 o corregedor-geral do Trabalho, Ronaldo Leal, constatou a incidência de fraudes no sistema de penhora de ativos, como aponta o Provimento CGJT nº 1 de 2003:
“CONSIDERANDO que o Corregedor-Geral apurou em correição que gerentes de agência bancária adotam a prática de alertar o correntista, exortando-o a retirar os valores da conta corrente a ser bloqueada, hipótese que configura delito contra a administração da justiça e fraude à execução (art. 179 do Código Penal);”
(…)
“CONSIDERANDO que não há nenhum sistema que estabeleça retorno on line ao Juiz da causa, consignando hora, minuto e segundo de chegada da ordem de consulta ou de bloqueio;”
(…)
Art. 4º – Constatado que as agências bancárias praticam o delito de fraude à execução, os Juízes devem comunicar a ocorrência ao Ministério Público Federal, bem como à Corregedoria Regional e à Corregedoria-Geral da Justiça do Trabalho, e relatar as providências tomadas.
Bem, seria imprudente e injusto afirmar que tal prática era adotada pela maioria dos gerentes de bancos. Talvez uma minoria, mal-intencionada e buscando favorecer seus clientes em detrimento da justiça, tenha facilitado tais fraudes. Mas é de se pensar que muitos casos ocorreram, a ponto de o corregedor-geral ter que orientar os juízes a comunicar o Ministério Público Federal. Apesar das inovações tecnológicas, ainda existiam obstáculos à efetivação dos bloqueios e penhoras.
Importante notar que tais casos perduraram mesmo após a implantação da versão seguinte do BacenJud. Em um caso de 2009, envolvendo dois processos que tramitaram na Vara de Trabalho de Lins (SP), pertencente ao TRT-15, a juíza Maria Helena Salles Cabreira adotou medidas contra o próprio banco, ao constatar fraude. Nos dois casos, o gerente da agência de Cafelândia (SP) avisou a empresa devedora que existia ordem eletrônica de bloqueio de suas contas, o que foi comprovado pela juíza por meio dos extratos bancários que demonstraram as movimentações bancárias. Por descumprir ordem judicial, o banco foi condenado a se responsabilizar pelo valor da execução, decisão que foi revista mais tarde pelo TST (Processos RR 553/2004-062-15-40.3 e RR 560/2004-062-15-40.5).
BacenJud 2.0
Somente em 2005 teríamos o BacenJud 2.0, já com funcionalidades próximas ao recém-aposentado sistema, amplamente utilizado nas unidades do TRT-2. A versão anterior já era muito utilizada pela Justiça do Trabalho, ainda que apresentasse limitações que tornavam o processo de busca de informações, bloqueio e penhora demorado. Para termos uma ideia, dos quase 470 mil ofícios eletrônicos recebidos via BacenJud em 2004, 440 mil foram encaminhados pela Justiça do Trabalho. Ou seja, a justiça especializada adotara a ferramenta e fazia uso intensivo dela.
A nova versão dispensou por completo o uso dos ofícios em papel e a espera da resposta dos bancos via postal. O Banco Central passava a ser apenas um gestor do sistema, não mais intermediando a troca de informações. O último gargalo da comunicação era desfeito.
Um dos debates jurídicos que corria na época era sobre o sigilo bancário e a violação da intimidade do executado, muitas vezes levantados para questionar a legalidade e a constitucionalidade do BacenJud. Contudo, o BacenJud 2.0 veio para definir os limites do bloqueio, sem que mais informações fossem fornecidas. Ou seja, bloqueava-se o saldo devedor, mas nenhuma informação sobre as movimentações, ou eventual saldo remanescente, era fornecida.
Além disso, a agilidade no desbloqueio de valores que excediam o da execução também ficou mais ágil, porque agora poderia ser feito pelo próprio magistrado, que, ao receber o retorno das informações em 48 horas, verificava a existência de penhora excessiva, e assim evitava transtornos maiores aos executados. Para aqueles que atuaram na Justiça do Trabalho essa possibilidade trouxe uma transformação fundamental no andamento das execuções, pois deu maior seguridade jurídica aos atos de bloqueio e também minimizou a possibilidade de serem cometidas injustiças, já que é justo ao credor receber o que lhe é de direito, mas não é justo que o devedor seja cobrado em valor maior do que deve…

Também minimizou os problemas gerados pela primeira versão, relativo à possibilidade de bloqueio de várias contas da parte executada ao mesmo tempo. No novo BacenJud o juiz emitia a ordem de bloqueio no valor de 20 mil reais, por exemplo, caso o devedor possuísse cinco contas com saldo suficiente para o bloqueio, o sistema, em 24 horas, bloquearia R$ 100 mil (R$ 20 mil de cada uma das contas). Caberia, portanto, ao juiz verificar no prazo adequado quais bloqueios teriam se efetivado, liberando as quantias acima do valor do débito, evitando, assim, o excesso de execução e o prejuízo das partes executadas, o que antes, devido aos entraves da comunicação, poderia perdurar por dias, às vezes semanas. Imagine o impacto em uma empresa de pequeno porte, tendo todas suas contas bloqueadas às vésperas do pagamento de seus funcionários e fornecedores. A Justiça do Trabalho, para satisfazer o crédito de um trabalhador, acabaria por lesar o empregador e uma quantidade muito maior de outros trabalhadores. Por isso, a penhora on-line ao mesmo tempo que criou atalhos e facilidades para magistrados e servidores em seu trabalho diário, também gerou uma demanda frequente de consulta dos resultados das tentativas de bloqueio, para evitar tais transtornos.

Uma das iniciativas já tomadas pela Justiça do Trabalho para evitar tais bloqueios múltiplos foi permitir a empresas de grande porte o cadastramento de uma conta específica pra que os bloqueios fossem realizados preferencialmente nelas (provimento de 2003 da CGJT), desde que possuíssem saldo suficiente.
“Art. 1º – É facultado a qualquer empresa do País, desde que de grande porte, estabelecida em várias localidades do território nacional, e que, em razão disso, mantenha contas bancárias e aplicações financeiras em várias instituições financeiras do País, cadastrar no TST conta especial apta a acolher bloqueios on line realizados por meio do sistema BacenJud, pelo Juiz do Trabalho que oficiar no processo de execução movido contra a empresa.”
Outro ponto que causava debate e levava a questionamentos sobre a legitimidade do uso do BacenJud fazia relação com o fato de não existir previsão legal expressa sobre a penhora on-line. Por isso, as alterações trazidas pelas leis nº 11.232, de 22 de dezembro de 2005, e nº 11.382, de 6 de dezembro de 2006, foram fundamentais para a resolução desses impasses. Principalmente a última delas trouxe a menção literal sobre o requisição por meio eletrônico de informações bancárias, prevendo o bloqueio e a penhora por meio dessas ferramentas.
“Art. 655-A. Para possibilitar a penhora de dinheiro em depósito ou aplicação financeira, o juiz, a requerimento do exeqüente, requisitará à autoridade supervisora do sistema bancário, preferencialmente por meio eletrônico, informações sobre a existência de ativos em nome do executado, podendo no mesmo ato determinar sua indisponibilidade, até o valor indicado na execução”.
A penhora de ativos na era das redes sociais e smartphones
Ao longo de quase 20 anos da sua instalação, o BacenJud tornou-se uma das principais ferramentas na execução trabalhista. A afirmação se reflete nos números: segundo dados fornecidos pelo Banco Central, em 2005, primeiro ano do BacenJud 2.0, o TRT-2 fez cerca de 8.850 solicitações via sistema e em 2019 bateu 307 mil. No histórico de implantação e uso da ferramenta, a Justiça do Trabalho sozinha correspondeu a 54% de todas as operações realizados no BacenJud 2.0. Só em 2019 foram mais de 13 milhões de operações, 73% de todas as movimentações daquele ano.

E não é só isso! A iniciativa pioneira abriu uma nova frente de convênios e parcerias do Judiciário com o Banco Central, a Receita Federal e outros órgãos públicos. Em 2006 o TRT-2 dava mais um passo importante ao firmar convênio com a ARISP (Associação dos Registradores Imobiliários de São Paulo), o que permitiu o acesso ao banco de dados da associação e a localização de imóveis de maneira muito mais fácil e rápida. A partir de 2010 o sistema passou a disponibilizar um sistema de penhora on-line que permitiu a emissão de solicitações de averbação de restrições.
Em 2007 foi a vez do convênio com a Secretaria da Receita Federal, que por meio do serviço InfoJud permitiu a solicitação e o acesso remoto a informações das declarações de imposto de renda das partes executadas. O mesmo ocorreu em 2006 com o acesso ao Renavam (Registro Nacional de Veículos Automotores), permitindo a busca e registro de restrições em veículos por meio do sistema RenaJud.
No caso da busca de informações financeiras, por exemplo, o acesso ao CCS, cadastro de Clientes do Sistema Financeiro Nacional, além do Simba (Sistema de Investigação de Movimentações Bancárias), que se deu em 2014, sofisticaram, ainda mais, os recursos disponíveis aos juízes.
Em outras palavras, o BacenJud veio no bojo de uma era de informatização das rotinas dos órgãos públicos e permitiu que a Justiça do Trabalho incorporasse as inovações existentes. Hoje, em uma época de redes sociais e smartphones, parece um pouco estranho pensar em um momento no qual o papel era a base dos processos de comunicação e as informações precisavam ser transportadas fisicamente pelos caminhos da execução. Por outro lado, é importante salientar que mesmo com apenas um burrico e uma vara (fazendo uso da expressão contundente do juiz Marcos Neves Fava) servidores, advogados e magistrados ainda conseguiram, no século passado, dar prosseguimento aos processos e fazer justiça.
Agora, com o Sisbajud e suas novas funcionalidades, a tendência que tais números aumentem e mais processos possam atingir suas finalidades. A juíza do TRT-2, Luciana Bezerra de Oliveira, titular da 57ª VTSP, explica um pouco sobre o novo sistema, que permite a integração com o PJe-JT, promovendo mais uma mudança:
O processo irreversível da digitalização das rotinas e do trabalho remoto está em plena consolidação, transformando as relações e as experiências do trabalho. Há mais de 30 anos talvez fosse impensável uma realidade como a atual, por isso a importância de debater e preservar o histórico de tais trajetórias, que englobam muito mais temas e questões (assuntos para outros textos e pesquisas).
O BacenJud foi aposentado, mas com o mérito de ter revolucionado a execução trabalhista e ter sido uma iniciativa pioneira que rendeu muitos frutos ao longo desses anos. Além disso, gerou diversos debates jurídicos que levaram a alterações legais. O Sisbajud, implantado em 8 de setembro de 2020, substituiu o BacenJud e trouxe mais funcionalidades, que permitirão aos magistrados utilizar nos dias de hoje recursos mais eficazes para “perseguir os rebanhos de dinheiro que flutuam velozmente pelas estradas da Internet”. Internet, essa, que aos poucos têm se transformado em nosso novo ambiente de trabalho, e de construção de experiências e memórias.

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Um comentário em “BACENJUD: UMA APOSENTADORIA MERECIDA”