Carmen Dora é daquele tipo de pessoa que quando começa a falar, você se sente impelido a se calar e a escutar. Não é somente pela sua altivez, pela firmeza de sua voz. Mas por aquilo que nos conta e ensina. Foi essa a impressão com a qual ficamos quando ela, pela primeira vez, nos visitou na sala do Centro de Memória, em 2018. Na ocasião, ela foi nos levar algumas fotos e imagens para integrar o acervo do TRT-2, e nos contou um pouco de sua trajetória como servidora e advogada, marcada por desafios, conquistas e memórias. Deixou-nos com a certeza de que deveríamos retomar essa conversa.
Por meio da editoria “Parceiros da Memória”, espaço no qual servidores, advogados e magistrados (ou qualquer outra pessoa que tenha relação com o TRT-2) são convidados a publicar textos sobre sua trajetória na página “Memórias Trabalhistas”, foi possível conhecer um pouco mais da história de Carmen Dora, mesmo em um contexto de pandemia e isolamento social. Ela é nossa segunda “parceira” a nos contar um pouco sobre suas experiências, por meio de um texto cheio de memórias, muito trabalho e histórias.
Carmen Dora de Freitas Ferreira ingressou como servidora do TRT-2 em julho de 1976, atuando como secretária de audiência e assistente de juiz em diversas juntas e varas do Regional (18ª, 43ª, 1ª de Guarulhos, 47ª, 1ª de São Paulo), além, de também ter atuado na 2ª instância prestando assessoria a desembargadores e juízes classistas. Graduada em Serviço Social, também se formou em Direito, em 1988, o que lhe permitiu exercer com mais competência suas atividades, além de lhe proporcionar a aprovação nos concursos internos do TRT-2.

Depois de conviver com renomados advogados e juízes, no cotidiano das unidades nas quais trabalhou, aposentou-se em 1996 e passou a exercer a advocacia, fazendo uso de seu conhecimento e experiência para lutar pelos direitos dos servidores do Judiciário, por meio de sua atuação como diretora do Sintrajud – Sindicato dos Trabalhadores no Judiciário Federal no Estado de São Paulo. Como representante sindical, foi pessoa importante em momentos cruciais, como na greve de 2002 e também no acompanhamento da finalização das problemáticas obras do Fórum Trabalhista Ruy Barbosa: “muitas foram as lutas e as lides em defesa dos servidores”.
Incansável, tornou-se figura importante no combate ao racismo e discriminações, atuando como presidente da Comissão de Igualdade Racial da OAB-SP. Como advogada e mulher negra, fez questão de exaltar o papel das pessoas negras na advocacia e na luta por direitos, tornando-se referência na discussão do tema.
Por sua vez, em seu trabalho como secretária de audiência, presenciou a Justiça do Trabalho promovendo e preservando os direitos básicos dos trabalhadores. Carmen faz questão de nos contar com detalhes essas situações, como uma espécie de manifesto político em defesa da Justiça do Trabalho. Mas que também diz muito sobre a narradora, pessoa que até os dias de hoje preocupa-se com questões sociais de extrema importância.

Além disso, sua narrativa é um registro de casos enfrentados em processos, alguns deles talvez perdidos nos anos, mas que por meio das histórias que Carmen Dora nos conta podem permanecer preservados naquilo que representam. Histórias de pessoas fragilizadas que encontraram formas de se restabelecer por meio do reconhecimento de seus direitos.
O texto que apresentamos nos foi enviado por Carmen Dora e agora é publicado em sua íntegra na página “Memórias Trabalhistas”. Ele é cheio de detalhes, traz a descrição de situações de audiência, processos com os quais ela trabalhou. E fala também de juízes e servidores, rememora pessoas que passaram pela Justiça do Trabalho e cruzaram com a trajetória da nossa “parceira da memória”.
Lembra-se com carinho do colega, o juiz trabalhista Amauri Mascaro Nascimento, que ao autografar um de seus livros escreveu: “À futura doutora Carmen Dora, que certamente terá um futuro brilhante”. Foi tanto uma representação de amizade quanto uma profecia, pois de fato, a moça teria um futuro brilhante. Também conta sobre uma audiência inusitada na qual o mesmo magistrado homologou um acordo que previa o casamento consentido entre as partes, entre outras situações que nos trazem um pouco da história do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região.
O texto transborda sensibilidade, mas também a presença da mulher forte e austera que pudemos conhecer, e da esposa (é casada com Waldir Ferreira há 45 anos), da mãe e avó, que fala com orgulho dos caminhos escolhidos por seus filhos (Tarcila, Eneida e Aurélio) e por ela própria. Uma pessoa de força, com uma trajetória invejável, que ainda está na luta. Como ela mesmo se define: “Sou a Resistência Positiva em Movimento e dou voz a quem não tem”. Deixemos, portanto, que a própria Carmen Dora nos conte sobre sua trajetória, e que ela sirva de inspiração para que mais colegas aposentados ou da ativa se disponham a compartilhar suas trajetórias com o Centro de Memória do TRT-2.
Com a palavra: Carmen Dora
Tenho uma história de vida e parceria com o TRT da 2ª Região ao longo de mais de vinte e quatro anos no exercício da função pública. Anteriormente exerci o cargo de Escrevente no Fórum João Mendes Junior em São Paulo. As lições aprendidas nesse Regional se constituem em verdadeira escola da vida, já que permitiu presenciar e observar a análise dos casos concretos pelo magistrado e a aplicação da justiça de forma mais coerente e justa, contribuindo para o resgate da dignidade humana daqueles que buscam esta Justiça Especializada.
No cotidiano, muitas situações inusitadas e curiosas aconteceram e outras até engraçadas espontaneamente narradas pela parte e outras trágicas, mas em todas elas foram buscadas a paz e tranquilidade como efeito da justiça. Muitos dos casos concretos ultrapassam e ultrapassaram às ficções literárias e transcendem no tempo, integrando o acervo jurisprudencial desse Regional e assegurando o direito em situações semelhantes. Os livros nem sempre trazem a resposta para o caso sub judice e assim, o Direito não é mera aplicação da lei, mas muito de bom senso.
Tomei posse na sede desse Tribunal que era na Avenida Rio Branco nº 285 um dos prédios mais bonitos do centro de São Paulo, na época, por seu acabamento arquitetônico diferenciado. Fui lotada na 18ª Junta de Conciliação e Julgamento (JCJ), denominação da Vara do Trabalho naquela época, e anteriormente adquiri experiência e vi o outro lado da vida, trabalhando na 9ª Vara da Família da Capital.

Então decidi que precisava conhecer o Direito do Trabalho e sua importância sobre a nossa vida e assim, prestei concurso de provas e títulos para trabalhar no Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo. A 18ª Junta de Conciliação e Julgamento, tinha como juiz titular o dr. Cláudio Henrique Correa e como Diretor de Secretaria, Yovane Sussumi Hirata que algum tempo depois ingressou na Magistratura nesse Tribunal da 2ª Região.
A hierarquia funcional naquela época era: atendente, auxiliar judiciário, técnico judiciário (atual analista judiciário) e oficial de justiça. Entretanto, para ascender ao cargo de técnico judiciário ou de oficial de justiça era exigida formação em direito, administração, economia ou ciências contábeis, além da aprovação em concurso interno também de provas e títulos, que era muito rígido.
Eu era bacharel em serviço social e diante dessa exigência, fui cursar a Faculdade de Direito na FMU – Faculdades Metropolitanas Unidas, bacharelando em 1988. Aberto o concurso interno, prestei e passei. Foi um concurso de médias altas para aprovação e ainda, no Diário Oficial era publicada a listagem dos reprovados! Então a extensa e volumosa lista foi consultada e na torcida para não encontrar o meu nome. A adrenalina subiu o coração bateu acelerado até que cheguei ao final da lista e não encontrei o meu nome. Que felicidade ! Foi muito gratificante essa promoção para técnico judiciário. Continuei trabalhando na audiência e naquele tempo, não existia verba de gabinete e a função não era considerada de confiança, o que somente foi reconhecido alguns anos após, quando foi instituída uma verba de representação de gabinete.

A pauta era composta com cerca de quinze audiências iniciais, cinco instruções e quatro a cinco julgamentos e, por vezes, oito julgamentos, sujeita à inclusão de alguns casos que fossem urgentes ou prioritários. Era tudo datilografado em máquina de escrever manual, Remington, depois Olivetti Letera, Olivetti Léxico, Olivetti Elétrica, sendo um original e três cópias carbonadas em folha de seda. Assim, diariamente eu tinha que preparar mais de trinta jogos compostos de uma folha original timbrada com as três cópias de seda para as audiências do dia.
Enquanto havia o diálogo para a tentativa de acordo, eu, rapidamente intercalava as folhas de carbono em outras folhas de continuação para que não faltasse. Tinha que datilografar muito rápido e a troca de folhas para continuidade da ata, era questão de segundos, um piscar de olhos e havia audiências que chegavam a ter dez, quinze ou mais laudas datilografadas e tudo em tempo real; o juiz acabava de ditar eu acabava de escrever e por vezes ele me perguntava: já escreveu? E eu dizia: sim. Fiquei muitos anos ininterruptos nessa função, aproximadamente uns treze ou mais.

Ficava muito atenta às determinações do Juízo, a forma de inquirição das partes e testemunhas do deferimento e indeferimento das pretensões, do fundamento legal e, em muitas vezes, sentenças eram proferidas no ato, prorrogando a audiência até dezoito e trinta ou dezenove horas, mas em média nesta vara e em outras em que trabalhei o término das audiências sempre ocorria por volta de dezessete horas.
O aprendizado serviu de complemento às atividades acadêmicas. Renomados advogados como dr. Luís Carlos Moro, Agenor Barreto Parente, Maria da Penha Santos Lopes Guimarães, Jandir Torres Moura Jr., Adionan Arlindo da Rocha Pita, Oksana Dziura, hoje membro do Ministério Público e os ilustres doutores, Ricardo Arthur da Costa Trigueiros e Vania Paranhos, hoje desembargadores desse r. Tribunal apresentavam manifestações inspiradoras aliadas aos argumentos técnicos e fáticos que ficaram na minha memória.

Presenciei situações de resgate da dignidade humana e uma das mais marcantes, em primeira instância, estando na vara o dr. Claudio Corrêa, aconteceu quando em um final de tarde, após as audiências, chegaram as partes e seus patronos noticiando acordo e requerendo homologação em um processo que tramitava há anos e que parecia não ter solução, pois se discutia a ilegalidade da dispensa ocorrida e a reintegração do reclamante que houvera sido determinada. O trabalhador tinha estabilidade no emprego, mas a empresa alegava que não poderia reintegrar porque o cargo que o mesmo ocupara havia sido extinto.
Não lembro qual era a função dele mas sei que era ligada à aviação e aviões e era uma grande empresa muito conhecida na época dos fatos. Nesse processo aconteceram muitos adiamentos, diligências, perícia, prorrogações de prazo e aquele trabalhador estava à margem pois não recebera seus direitos e continuava desempregado. A audiência foi instalada e a empregadora propôs a reintegração a partir do dia seguinte, todavia com um salário menor e redução de alguns benefícios, não lembro quais, pois faz muitos anos. O juiz perguntou ao Reclamante se estava de acordo e explicou as consequências da redução proposta e o trabalhador respondeu, com lágrimas nos olhos e a voz embargada:
“Eu aceito Senhor Juiz! Não vou mais passar fome; vou poder cuidar da minha família, Senhor Juiz; vou ser novamente aceito na sociedade, deixar de ser excluído de ser rejeitado pelos conhecidos e por aqueles que se diziam amigos. Estou me sentindo integrado novamente na sociedade. Sabe o que é ser aceito? Não vou mais passar fome, estou de acordo, estou de volta à vida, vou ter o que comer, onde morar, onde dormir, não mais virarão as costas para mim porque não estarei mais desempregado. Eu aceito Senhor Juiz.! “
Isso faz muitos anos, e as palavras do trabalhador foram no contexto acima descrito, não as lembro exatamente, mas não esqueci que foi no sentido ora descrito. Todos ficamos emocionados, inclusive o juiz e eu que presenciei tudo. O acordo foi homologado e aquele trabalhador saiu da sala de audiências radiante, chorando de alegria e com a certeza de que a justiça foi feita.

Outra situação, nessa mesma Junta, a 18ª, dentre outras, e também sob a Presidência do dr. Claudio Corrêa: o Reclamante trabalhava como operador de empilhadeira numa fábrica de bebidas muito conhecida em São Paulo e assim, movimentava muitas caixas de bebidas para serem armazenadas. Em certo dia, no seu trabalho, ao manusear uma pilha de caixas de bebidas houve um estouro de uma delas que se assemelhou a uma explosão e atingiu o rosto e parte do corpo do trabalhador, deixando- o todo retalhado, deformado e cego de um olho. O lado do seu corpo que foi atingido pelo estouro e estilhaços de vidro ficou com cicatrizes enormes parecendo queimadura muito grave, como presenciamos na audiência. Ficou desfigurado.
A empresa o despediu e em defesa alegou que o trabalhador fora negligente no exercício de sua função e assim, o fato não poderia ser enquadrado como acidente no trabalho e não havia que se falar em reintegração e estabilidade no emprego. O Juiz descreveu na ata e eu presenciei a aparência do reclamante em decorrência do acidente, todo deformado e diante da prova produzida, julgou procedente a ação, determinando a reintegração em função compatível com o estado do reclamante o que inclusive era previsto em norma coletiva. Secretariei esta audiência na primeira instância e o julgamento. Mas a empresa recorreu à Segunda Instância desse Regional e nas razões apresentadas se insurgiu contra a sentença alegando que a reintegração e pagamento dos consectários decorrentes não podiam prosperar, porque não houve sequela incapacitante e que a culpa do acidente era do trabalhador! O processo subiu para a Instância Revisora.
Após o término das audiências, eu tinha que proceder a juntada das defesas e documentos trazidos pelas partes, numerando-os e rubricando todas as folhas que em muitos casos eram inúmeras, mais de duzentas, trezentas, originando volumes. Ainda, eu tinha que separar os processos para a pauta do dia seguinte e muitas vezes eles não estavam no lugar, demandando busca por toda a secretaria para encontrá-los. Processos andam ! Ou, se movimentam! Ufa! Só de lembrar já fiquei cansada, mas sobrevivi.

O doutor Claudio era muito exigente e além de magistrado era professor de um curso preparatório para ingresso na magistratura. Assim, cada audiência sob a sua presidência era uma aula de valor inestimável e enriquecida pela convicção firmada diante do caso concreto. Fui privilegiada com esse aprendizado e de outros magistrados com quem trabalhei, sendo que muitos já aposentaram a outros estão na ativa, como dra. Maria Doralice Novaes, dra. Tania Bizarro Quirino de Morais, doutor Ricardo Trigueiros.
A audiência exigia que se datilografasse com muita rapidez e eu datilografava em tempo real; o juiz acabava de ditar eu acabava de escrever. Era preciso muita dedicação e ante o volume de afazeres, a jornada de trabalho era habitualmente elastecida, tanto na entrada como na saída. O dever do oficio me movia. Não conheci nesse período, alguém que tivesse ficado tanto tempo na função, ininterruptamente. Também não conheci, nesse interregno outro (a) secretario (a) negra (o) que exercesse essa função. Cheguei a ter tendinite e nem sabia o que era isso, pois pouco se falava em LER (lesão por esforço repetitivo); só sabia que a mão doía muito e demorou para entender o porque, mas superei.
O local de trabalho era na avenida Ipiranga. Posteriormente algumas varas foram instaladas na av. Cásper Líbero e outras no prédio onde funcionou a sede do Tribunal, na av. Rio Branco, o qual foi adaptado para tanto. Todos os dias havia uma fila enorme para as partes adentrarem ao prédio da av. Rio Branco, o que chamava a atenção de quem por lá passasse e o controle para acesso aos elevadores era feito pelo colega Breno Moraes, que coordenava os elevadores, um para os andares pares e outro para os ímpares.
As varas novas, daquela ocasião, a partir da 23ª até a 45ª, foram instaladas no prédio da avenida Rio Branco e fui lotada na 43ª, para a qual o doutor Claudio se removeu e solicitou minha lotação. Continuei na audiência até que ele se aposentou e a titularidade foi assumida pelo dr. Carlos Moreira de Lucca, tendo como diretora de secretaria a sra. Ruth Santos Fagundes e posteriormente Celso Gomes da Silva, ambos já falecidos.

Permaneci até a aposentadoria do dr. De Lucca, quando assumiu a titularidade da Vara a dra. Laura Rosse então, a administração me removeu para a cidade de Guarulhos na Grande São Paulo, para a 1ª Vara de Guarulhos, sob a titularidade da dra. Mércia Tomazinho e para exercer a função de Assistente de Juiz e Diretor de Secretaria Substituto.
Esse tempo não foi bom para mim e me abalou profundamente, uma vez que houve uma mudança radical da rotina de anos. Guarulhos se assemelha a uma cidade interiorana e a lotação das varas era composta por servidores do quadro da secretaria do Tribunal e por servidores cedidos pela Prefeitura daquela cidade. O volume de trabalho era imenso assim como a distância para chegar ao local de trabalho, demandando mais de uma hora em condução enfrentando a av. Marginal, diferente dos vinte minutos que despendia aqui na Capital.
Quando chovia forte e como acontece até hoje, havia alagamento e era impossível trafegar pela Marginal. Então, ficava pensando como ia voltar para casa. Os caminhos alternativos também ficavam alagados e assim, eram horas em condução, buscando uma alternativa para chegar a São Paulo, esperando a água baixar. Muito estressante.
Após um ano e oito meses fiquei sabendo que o dr. José Garcia Monreal Júnior, titular da 1ª. Vara do Trabalho de São Paulo, estava à procura de um secretario de audiências, pois o que trabalhava com ele fora nomeado oficial de justiça e a função ficou vaga. Me candidatei, e em dois dias, a pedido do dr. Monreal, fui lotada pela Administração na 1ª Vara do Trabalho de São Paulo. Sou grata ao dr. Monreal pela oportunidade concedida.
Nessa mesma Vara, fui designada substituta do assistente de juiz que era o José Roberto Magatti e tive a honra de trabalhar com o saudoso doutor Amauri Mascaro Nascimento, ícone do Direito do Trabalho, e um dos maiores juristas brasileiros. Fui sua aluna na Faculdade FMU, no Curso de Direito, sendo relevante salientar que ele autografou para mim, em um de seus livros relativo aos Princípios do Direito do Trabalho, a dedicatória: “À futura doutora Carmen Dora, que certamente terá um futuro brilhante”. Não errou.

Ouvi dele, muitas histórias, pois ele era muito descontraído nas audiências, mas sem perder a autoridade. Uma delas ficou marcada e é contada pela advocacia de geração em geração. Contou o doutor Amauri, que certa vez em uma das audiências que presidiu, a reclamada, uma senhora muito distinta e elegante, apresentou diversas propostas para acordo, mas o reclamante, um senhor também elegante rejeitava sistematicamente. Com sua paciência o dr. Amauri procurava entender e intermediar para que acontecesse a conciliação e ficou intrigado com as recusas do reclamante diante das propostas apresentadas.
Então, a reclamada apresentou uma proposta para acordo que era muito extraordinária, benéfica e irrecusável, mas o reclamante rejeitou. O doutor Amauri ponderou que era boa a proposta e perguntou ao reclamante porque ele não aceitava e qual era sua pretensão. E aquele reclamante respondeu: “Eu quero é casar com esta mulher”! E doutor Amauri perguntou para a Reclamada: “a senhora aceita?”. Ela disse sim e ele disse que homologava.
Já ouvi esta história contada por muitos colegas e existem muitas outras. Doutor Amauri era uma sumidade! Algum tempo depois, a convite do dr. Walter Fernandes fui removida para a 47ª Vara, na função de assistente de juiz, e o doutor Walter, além de magistrado, foi também outro professor e disse, que a exigência para assisti-lo era que tivesse um bom português e uma boa escrita. Passei no teste. Algum tempo depois ele também se aposentou e, então, fui indicada para trabalhar com a doutora Diva Aparecida Leite Alves de Almeida na 10ª Vara da Capital.

A referida magistrada estava prestes a ser promovida para a Segunda Instância, o que aconteceu em curto lapso temporal e então, fui lotada em seu gabinete, como assistente de juiz, tendo como colegas de equipe Renato de Carvalho Guedes, designado Assessor, e Ana Lucia Vesneyam, também Assistente, que hoje são juízes do trabalho. O gabinete ficava no 16º andar do prédio sede do Tribunal, na rua da Consolação nº 1272, e lá também estava localizado o gabinete da dra. Dora Vaz Treviño cuja assessora chama-se Carmen. Então, naquele andar, tinha uma Dora, uma Carmen e uma Carmen Dora ! Que bela coincidência !
Permaneci, contribuindo com os trabalhos de assessoria com a equipe da dra. Diva até que ela se aposentou por tempo de serviço (cerca de quarenta anos) e aí fui lotada no gabinete do doutor Leny Pereira Santana – juiz classista – com a assessora, doutora Ângela Cristina Corrêa, hoje magistrada do trabalho e as colegas Sandra e Julieta. Essa experiência em segunda instância me deu uma visão ampliada das mais diversas decisões da grande maioria dos Juízes da jurisdição do TRT da 2ª Região.
Com a aposentadoria do dr. Leny fui designada para o setor de Dissídios Coletivos, até ulterior deliberação e aí, requeri a aposentadoria por tempo de serviço, tendo sido o ato publicado no Diário Oficial da Justiça. Ainda, prestei serviço de Assessoria para o doutor Hideki Hirashima – juiz classista – e terminado o mandato dele, fui convidada para assessorar o dr. Roberto Carvalho Cardoso, também juiz classista e professor universitário da Fundação Getúlio Vargas, a FGV.
Por conta de uma destas surpresas que a vida nos reserva, aquele processo em que o reclamante sofreu o acidente trabalhando como operador de empilhadeira e que o deixou retalhado, com o rosto deformado e cego de um olho, teve como relator o dr. Roberto Carvalho Cardoso. Que coincidência incrível e inacreditável essa! O doutor conversou muito comigo sobre esse processo, analisou cada detalhe e concluiu que era uma grande afronta à dignidade humana, uma crueldade a dispensa imposta ao reclamante e com a agravante consistente no argumento de que não houve sequela incapacitante! Ficou consignado naquele voto, que sequela incapacitante seria pretender que o reclamante tivesse ficado cego dos dois olhos além da deformação corporal exposta, o que não tem respaldo legal. Que era desumano o tratamento dado àquele trabalhador. Ele manteve a decisão de primeiro grau, no que foi acompanhado por unanimidade pelos componentes da Turma julgadora.

Após a minha aposentadoria, quando recebi o primeiro provento, não fui contemplada com uma diferença salarial devida há tempos e ao buscar esclarecimento junto a Administração fui informada de que o pagamento de diferenças salariais devidas não contemplava os aposentados, mas somente os ativos, que não recebi porque era aposentada! Então, entrei para a direção do Sindicato dos Trabalhadores no Judiciário Federal em São Paulo (Sintrajud), como representante dos aposentados, mas acabei por representar toda a categoria, tendo sido designada coordenadora-geral e coordenadora do Departamento Jurídico. Participei de um congresso realizado no Hotel Atibainha, em São Paulo, cuja pauta de reivindicações era as condições de trabalho e o reajuste salarial que não era concedido, aqueles dias de greve supramencionados e, ainda, estava em processo a escolha de servidores para formar a chapa e concorrer às eleições.

Na assembleia fiz um pronunciamento defendendo o direito de paridade dos aposentados com os ativos e então por aclamação dos colegas presentes, em pé, fui indicada para compor a chapa que posteriormente venceu a eleição. Compus a diretoria por duas gestões. Muitas foram as lutas e as lides em defesa dos servidores dos Tribunais Federais sediados em São Paulo, mormente esse TRT da 2ª Região, e eu estava presente em todas. Conseguimos a reposição salarial do percentual de 11,98% (onze noventa e oito por cento) retirados dos nossos salários arbitrariamente e havia uma batalha judicial de anos para reavê-lo, mas o governo federal não pautava a questão que se arrastava havia anos.
Então, numa força tarefa sólida, com o apoio da categoria, da mídia, da abordagem pessoal aos parlamentares em Brasília, a questão foi resolvida por acordo, pondo fim à lide judicial e repondo o percentual de 11,98% aos servidores federais. Foi uma batalha histórica e eu estive presente em todos os atos e mobilizações para essa conquista inclusive em Brasília.

Outra situação marcante foi restauração do vale refeição suprimido pelo TRT e o abono de dias de greve, que durou cerca de trinta dias reivindicando reajuste salarial e melhoria das condições de trabalho. Quando foram retomados os trabalhos, passou a ser analisada a legalidade ou não da greve e a Presidência do TRT, na época o dr. Floriano Vaz (1998 a 2000), estava muito propensa a determinar o desconto destes dias parados, os quais, para alguns servidores chegou a trinta.
As reivindicações eram justas e o Sindicato interveio para que houvesse o abono daqueles dias parados de vez que após o fim da greve os serviços foram regularizados; durante a paralisação, alguns servidores marcaram o ponto e outros não e participaram do movimento paredista; muito tempo já havia passado, mais de ano após o fim da paralisação e já estando superada a imediatidade. Assim, não se podia saber com precisão, quem participou da greve e quem não participou. Eventual desconto daqueles dias parados seria um prejuízo inestimável, pois o salário é alimentício e indispensável à sobrevivência do servidor e sua família e ainda, poderia haver injusta punição, pois como já mencionado, alguns marcaram o ponto e outros não.
Argumentamos também com a preclusão, de vez que ultrapassada a imediatidade estando em vigência o princípio da isonomia. Uma vez, que se desconto houvesse, seria uma justiça injusta e, portanto, não produziria efeitos, como se expressou Ruy Barbosa. Fui a interlocutora designada pela Comissão de greve para defender e apresentar à Presidência do Tribunal, na época dr. Floriano Vaz, os argumentos que justificavam o abono dos dias parados. O Presidente se comprometeu em analisá-los, anotando-os e após dois dias publicou no Diário Oficial da Justiça o Ato Administrativo que abonava definitivamente aqueles dias de greve, afastando definitivamente o pesadelo que abalava a paz de espírito e a vida emocional dos servidores. O abono trouxe de volta a paz e a tranquilidade.

E ainda, dentro dos grandes enfrentamentos, integrei a gestão sindical que conquistou a paridade de tratamento entre ativos e aposentados, mediante a edição de lei federal especifica e que decorreu de muita luta e resistência conjunta da categoria e abarcou todos os servidores do Poder Judiciário Federal. Ainda, participei ativamente do movimento em prol do término da construção do Fórum Ruy Barbosa onde estão localizadas todas as varas do trabalho da capital de São Paulo.
No que tange a Advocacia, requeri a Carteira da Ordem no primeiro dia seguinte a minha aposentadoria, pois já havia passado no exame, todavia a inscrição ficou suspensa diante da incompatibilidade do exercício da advocacia com a função pública. Tive passagem marcante, tanto na Faculdade de Direito, quanto naquela de Serviço Social quando fui a juramentista da Turma e fui aplaudida em pé pelo público que lotou o Palácio das Convenções, no Anhembi, por mais de cinco minutos. Emoção indescritível.

Na Faculdade de Direito, fui referência positiva, aluna negra de destaque, estudante do período diurno e meus escritos eram conhecidos pela minha turma e as demais do período da manhã, sendo xerocopiados. Milito primordialmente nesta Justiça Especializada e na defesa da igualdade de oportunidade, com intensa atividade na Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional São Paulo, difundindo o conhecimento, os instrumentos legais e as ações afirmativas necessárias à erradicação do racismo e das discriminações e preconceitos.
Fui nomeada Presidente da Comissão de Igualdade Racial da Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional São Paulo, anteriormente denominada Comissão do Negro e Assuntos Antidiscriminatórios, tendo permanecido por mais de duas gestões. Também integrei diversas outras comissões como Mulher Advogada, Direito e Liberdade Religiosa, Advocacia do Século XXI, Verdade da Escravidão Negra no Brasil. Integrei o rol de Palestrantes da OAB-SP tendo recebido diversas homenagens.

Recebi, na CIR – Comissão de Igualdade Racial, muitos expedientes denunciando casos de racismo, discriminação e preconceito, os quais, após as providencias administrativas necessárias foram relatados e remetidos ao Ministério Público para os procedimentos penais consequentes, bem como a Coordenadoria de Assuntos para a População Negra e Indígena da Secretaria da Justiça e defesa da cidadania do Estado de São Paulo.

O caso mais chocante durante minha gestão ainda está em andamento em uma das Varas do Fórum Criminal da Capital de São Paulo. Trata-se de um rapaz pardo, estudante de medicina em uma conceituada universidade, que foi discriminado racialmente por um dos preletores, o qual lhe disse que ele não tinha perfil para ser médico em razão de sua cor e porque trabalhava à noite e assim o curso não seria para ele?! Ainda disse aquele preletor que reprovaria a turma toda mas não o deixaria colar grau (sic). Foi instaurado Inquérito Policial que, após relatado, foi enviado ao Ministério Público que apresentou denúncia e remeteu ao Fórum Criminal da Capital, onde tramita em uma das Varas. Esse jovem conseguiu se formar e receber o CRM. Tinha o sonho de trabalhar num hospital conceituado aqui da Capital, o H.C.A. e conseguiu, mas no dia em que deu seu primeiro plantão como médico, passou mal e faleceu. Dr. Rogerio de Oliveira Castro, PRESENTE!
Ainda, na Presidência da Comissão, resgatamos o histórico de Benedito Galvão, o primeiro Presidente Negro da OAB-SP e fizemos inserir sua foto na galeria de Presidentes da OAB-SP e posteriormente, idealizamos o Prêmio dr. Benedito Galvão tendo decidido a Comissão que a outorga seria anual e àqueles que se destacam no combate as discriminações raciais e preconceituosas em quaisquer de suas formas e que tenham um trabalho reconhecido nesse aspecto; que tenham representatividade, podendo ser pessoa física ou jurídica. Durante a minha gestão na Presidência da Comissão de Igualdade Racial, que se encerrou com o fim da gestão do dr. Marcos da Costa, em 31 dezembro de 2018, o prêmio foi representado por uma estatueta negra, o Oscar da Negritude e já foi outorgado a diversas personalidades e autoridades estando em sua IX edição.

A experiência nesse Regional teve e tem grande impacto em minha vida e no cotidiano do exercício da advocacia. A experiência prática que a mim se amoldou, os livros não conseguem descrever. Dentre muitas das homenagens recebidas, tenho a inserção de meu nome na parede da Associação dos Advogados Trabalhistas de São Paulo, juntamente com renomados operadores do direito, o que é muito gratificante e provoca emoção permanente. Na Presidência da Comissão de Igualdade Racial recebi na Câmara Municipal de São Paulo voto de louvor e o Prêmio Mulher Excelência; na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, o Prêmio dra. Theodosina Ribeiro; recebi homenagem do Sindicato dos Enfermeiros do Estado de São Paulo e do Sindicato dos Químicos de Rio Claro e da Câmara Municipal de referida cidade; homenagens da OAB-SP, de diversas de suas subseções tanto na Capital como no interior e do Departamento de Cultura e Eventos com a insígnia “pelos relevantes serviços prestados a advocacia e a cidadania”. Palestrei a convite da OAB Federal e por indicação do presidente da OAB-SP dr. Marcos da Costa, na Conferência Nacional da Advocacia realizada em São Paulo no Centro de Exposições do Anhembi.

Sou a Resistência Positiva em Movimento e dou voz a quem não tem. Agradeço a Deus por esse Tribunal Regional do Trabalho da 2ª. Região e por tudo que ele representa e tem me proporcionado. Meu Tributo a Deus: “Como agradecer por tudo que fizeste a mim? Não merecedor, mas provaste o Seu amor sem fim. As vozes de um milhão de anjos/ Não expressam minha gratidão/ Tudo o que sou e o que pretendo ser/ Eu devo a Ti Senhor! A Deus seja a honra/ A Deus seja a gloria/ A Deus seja a glória/Pelos Séculos, Amém!

Memórias Trabalhistas é uma página criada pelo Centro de Memória do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, setor responsável pela pesquisa e divulgação da história do TRT-2. Neste espaço, é possível encontrar artigos, histórias e curiosidades sobre o TRT-2, maior tribunal trabalhista do país.
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Um comentário em “PARCEIROS DA MEMÓRIA: CARMEN DORA DE FREITAS FERREIRA”