Entrando em apuros…
Manhã agitada na Prefeitura de Vargem Grande Paulista. Decretos, Portarias, Projeto de Lei, Consultas, questões tributárias, pareceres, reunião da Comissão de loteamentos, etc. O tumulto era generalizado no pequeno Departamento Jurídico. Tudo era urgente.
O jovem procurador-geral do Município (nome pomposo para o cargo) já estava quase entrando em parafuso quando foi alertado: “O dr. não esqueceu da audiência trabalhista das 13h07 em Cotia, né?” – Claro que não!” respondeu aquele, pegando a pasta e já correndo para preparar a contestação. Peça redigida, documentos numerados e uma hora depois estava preparada a defesa.
A audiência seria inicial e rápida, situação que fazia o procurador já pensar nas atividades do período vespertino. Terminado o almoço (Cotia não é longe), o procurador pegou a pasta, olhou para um dos advogados que trabalhavam com ele, seu grande amigo (grande mesmo – mais de 120 kg), boa pessoa, dedicado e habilidoso nas questões políticas e de direito, mas sem experiência na área trabalhista, imaginou ser uma boa oportunidade para iniciá-lo em tal matéria. Fixou o olhar no colega e decretou: “Você vem comigo, vai ser o preposto!”. Antes mesmo de qualquer resposta do advogado, o procurador preparou a preposição.

O advogado meio receoso (talvez pressentindo o desfecho que a situação teria), argumentava que não sabia nada do caso, nem mesmo sabia o sexo de quem reclamava. “Não tem importância. Não será preciso nada. É só uma audiência inicial. O juiz não vai perguntar nada, é só assinar a ata e tudo bem. Na próxima audiência, de instrução, é que serão colhidos os depoimentos”, explicou o procurador em tom de profundo “conhecedor da matéria”, ante a sua experiência anterior de quase dois anos como advogado de sindicato. O advogado, meio inseguro, mas dobrando-se ante a eloquência do outro, nada mais argumentou.
Iniciada a audiência, rejeitada a conciliação e tomada a defesa, o juiz (homem sério, impaciente, conhecido e temido pela sua energia e pulso forte na condução das audiências), apontando a cadeira de onde se presta depoimento, sem nem mesmo olhar para o advogado-preposto, disse de forma implacável e com voz de trovão: “O sr. senta aqui!”
O advogado, já com as mãos molhadas de suor frio, se levantou de sua cadeira e foi em direção à outra. No pequeno trajeto fitou o procurador, num misto de ódio e de clemência, implorando com o olhar por ajuda… E ela não veio. O procurador, ao mesmo tempo em que se apenava do amigo, não dispunha de meios ou coragem para impedir a oitiva do mesmo.

Mal sentou na cadeira e o juiz perguntou: “Ela (a reclamante) era celetista ou estatutária?” Quase gaguejando veio a resposta: “Ela e-e-era celetista.” Em tom mais alto o juiz falou: “Mas aqui tá escrito que ela era estatutária.” Aí o advogado, já molhando toda a camisa, respondeu: “É… Ela era es-estatutária.” E o juiz mais impaciente ainda : “Afinal…, ela era estatutária ou celetista?” O nervosismo causou uma resposta ainda pior: “Ela era celetista mas regida pelo estatuto“. “Como é que é ?!?!?” perguntou ainda mais alto o juiz, já esfregando a testa, como sinal de sua irritação. “É…, não…, sabe…, existe divergência na doutrina a respeito do assunto…” Mesmo antes de completar a frase o nosso preposto foi interrompido pelo juiz com outra pergunta, em tom ainda mais forte e fúnebre (do ponto de vista do preposto, é claro): “Qual era o horário dela?” Como sequer imaginava, a resposta não poderia ser outra: “O horário normal!”, “Qual era o ‘horário normal?'”, quis saber o juiz já no ponto máximo de sua impaciência. Com o coração na boca, a resposta foi : “Bem…, é…, o horário que ela trabalhava todo dia…, er…”
Neste momento, não se sabe até agora se por compaixão ou por cansaço, o juiz dispensou o preposto e encerrou a audiência, designando outra para instrução.
Saindo da sala, com as portas se fechando em suas costas, o procurador, de imediato, olhando para o ainda desesperado amigo, teve uma crise de riso, se lembrando do sufoco passado segundos antes, enquanto este, muito bravo, o acusava de traição (“Você me ferrou! O juiz deve pensar que eu sou um débil mental. Você dá risada porque não foi com você”, etc). E assim cruzaram a rua em direção ao carro: um quase morrendo de rir, enquanto o outro bradava palavras pouco polidas.
No episódio ambos aprenderam que o juiz pode, de ofício e a qualquer momento, interrogar as partes (art. 342 do CPC), sem qualquer intervenção do procurador (art. 446, parágrafo único, do CPC).
Ahh…! Ia me esquecendo… O fato é verídico, o procurador-geral era este subscritor e o juiz, o dr. Luiz Antonio Vidigal. O nome do advogado, que depois foi o procurador-geral da cidade com brilhantismo, eu não posso dizer, pois se não perdi o amigo naquela oportunidade eu não quero correr tal risco agora…“

José Lucio Munhoz é juiz do trabalho aposentado. Fez carreira como advogado e atuou como procurador-geral da cidade de Vargem Grande Paulista antes de ingressar na magistratura em 1995. Em 2008 foi removido para o TRT-12 (Santa Catarina) onde atuou como juiz titular da 3ª Vara do Trabalho de Blumenau, aposentando-se em 2019. Foi membro do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado Federal.
Nota: Os fatos narrados ocorreram no ano de 1993. O presente texto foi escrito entre os anos de 1993 e 1994, a pedido do atual desembargador-presidente do TRT-2 José Antonio Moreira Vidigal, que o encaminhou ao Centro de Memória do TRT-2 em nome do autor. Portanto, a menção às leis e artigos correspondem aos vigentes à época do ocorrido.
Este texto foi publicado no contexto da campanha “80 anos em Memórias”, que integrou as atividades em comemoração aos 80 anos de instalação da Justiça do Trabalho da 2ª Região, realizadas pelo Centro de Memória do TRT-2 no ano de 2021. Mais contribuições de servidores, servidoras, magistrados e magistradas do TRT-2 (da ativa e aposentados) podem ser lidas aqui.

Memórias Trabalhistas é uma página criada pelo Centro de Memória do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, setor responsável pela pesquisa e divulgação da história do TRT-2. Neste espaço, é possível encontrar artigos, histórias e curiosidades sobre o TRT-2, maior tribunal trabalhista do país.
Acesse também o Centro de Memória Virtual e conheça nosso acervo histórico, disponível para consulta e pesquisa.