O Balcão dos anos 90
Uma das coisas que mais me deixa saudades é lembrar como era o atendimento do balcão das Varas (antigas Juntas de Conciliação e Julgamento) nos anos 90. E essas memórias estão umbilicalmente ligadas à minha passagem pela 7ª Junta de Conciliação e Julgamento, localizada na Av. Ipiranga, 1225.
A Vara tinha um ambiente muito amplo, com 3 salas, separadas por paredes e o balcão ficava exatamente na sala do meio. Era composto literalmente por uma bancada aberta e sem os atuais vidros que hoje separam e demarcam fortemente a área de atuação do servidor e do usuário da Justiça.
Aos poucos fui percebendo o quanto essa nova disposição me incomodava, sem saber ao certo o por quê. Hoje reflito que o atendimento se tornou frio e distante, tão oposto ao que era nos anos 90.
Recebíamos os advogados e os outros usuários face a face, com um aperto de mão na maioria das vezes. Naquela época não era incomum o balcão ser frequentado pelos donos dos grandes escritórios de advocacia, como o dr. Agenor Barreto Parente, dr. Leandro Meloni, dr. Raul Villas Boas e tantos outros que não consigo nomear agora.
Eu adorava conversar com os advogados, ouvir suas histórias, as agruras pelas quais passavam nos prédios antigos, sem uma infraestrutura adequada ao conforto tão necessário às partes. As histórias profissionais se misturavam às suas histórias de vida, seus problemas, suas alegrias, seus hobbys. Era muito interessante imaginar aquele advogado de terno surfando no fim de semana ou ouvir suas histórias engraçadas num ambiente tão sisudo como o Judiciário.
Houve uma época, na qual eu cursava direito no Largo São Francisco, em que um professor da faculdade me ajudou a publicar textos jurídicos num jornal chamado “A Tribuna do Direito”, um periódico muito conceituado por advogados e juízes.

Foi uma fase muito feliz da minha vida e alguns desses meus textos podem ser encontrados na biblioteca do Tribunal.
Eu falava dos meus sonhos como estudante de direito, tecia críticas e tentava achar soluções para a execução, por exemplo.
Esses textos me projetaram e angariaram a simpatia de muitos advogados, num reconhecimento externo das minhas capacidades, que compensava muitas das frustrações internas na vivência institucional. Por conta de um desses textos, um dia um advogado me procurou na Vara e se apresentou como o dr. Francisco Ary Montenegro Castelo, dizendo que tinha ido ao balcão só para me conhecer e dizer que a Justiça precisava de gente como eu! Quanta honra e quanta alegria! Porque meus textos sempre falavam de uma utopia e de um mundo mais humano, algo que tocava fortemente meu coração antes de ser expressão escrita.



Creio também que por conta dessas publicações a dra. Maria Elisabeth Pinto Ferraz Luz Fasanelli acabou me chamando para trabalhar em seu gabinete na 2ª Instância, quando foi promovida e deixou a presidência da 7ª Vara.
Mas desde 1995 eu comecei a escrever poemas também e eu adorava mostrar meus escritos para as pessoas no balcão. Havia um advogado que me chamava carinhosamente de Cora Coralina! E assim meus poemas circularam durante anos por entre aquele público carinhoso com quem eu convivia no balcão.
O balcão era assim uma porta para uma convivência amistosa entre servidores e advogados, porque, apesar de estarmos em lados opostos, todos estamos à serviço da Justiça, como bem diria Piero Calamandrei, um sonhador como eu!

Como substituta do titular do balcão da 7ª Vara, Zeferino Francisco Pinheiro Neto, eu muitas vezes brincava com o público durante o atendimento, para quebrar o stress inerente à atividade. Eu lembro de uma vez em que uma advogada foi falar com o diretor, Enio Ocimoto Oda, para que ele me colocasse como a titular da tarefa. Mas todos sabíamos que o balcão era extremamente pesado fisicamente. Tínhamos que guardar diariamente pilhas enormes de processos em armários verdes metálicos, que viviam quebrando por conta do peso das gavetas. No final do dia, várias vezes o Francisco ficava martelando as gavetas para consertá-las, na nossa serralheria improvisada. São lembranças doces e cheias de uma alegria ingênua que a tudo tocava.
Uma lembrança marcante era eu sair ajudando o Francisco, o titular do balcão, a procurar os processos que ele não encontrava. Por conta disso os advogados achavam que eu era a diretora, a assistente do juiz, mas eu era o que sempre fui: uma servidora engajada em suas tarefas, que acredita que a cooperação é um excelente antídoto contra o stress da nossa atividade forense. Humanidade em doses elevadas sempre!

Com o tempo eu decorava o número do processo e as partes, de tanto manusear os autos e isso me ajudava ainda mais a localizar processos perdidos na Vara, uma tarefa de detetive que eu achava muito divertida!
Havia dias em que a gente percebia uma movimentação intensa no balcão: eram os arrematantes olhando os processos com os bens que iam a leilão para ver se tinha alguma coisa interessante. Eram sempre os mesmos arrematantes, um grupo já conhecido por nós da vara. Quem apregoava os bens na 7ª JCJ era um oficial de justiça (porque naquela época eles estavam lotados na vara) chamado Luis Francisco Luporini Palermo, que era muito simpático e divertido.
Como eu era curiosa, fui um dia espiar como ele apregoava. No dia em que só havia bens desinteressantes a serem leiloados, quem apregoava ficava falando sozinho no corredor da Vara. A nossa vontade era encerrar logo aquilo, mas o diretor nos alertou que era um ato solene, que poderia ser anulado se a gente fizesse de forma diferente do que dizia a norma. Era uma situação muito engraçada, os advogados olhando a gente lendo a descrição dos bens para ninguém!!! A partir daquele dia em que fui ver o Luis apregoar, me tornei sua companheira de leilão, porque ele não queria falar sozinho no corredor!!! E quando ele saía de férias, era eu a louca que falava sozinha!!
Um dia houve uma discussão a respeito do valor mínimo para lance. No dia seguinte, meu diretor (Enio Ocimoto Oda) me chamou para mostrar a petição do processo: nela estava a narração do advogado citando o nome do Luis Francisco e o meu. Até hoje me lembro da minha cara de susto, ao me ver como protagonista do processo, mas Enio, com sua calma e sabedoria, apenas sorriu dizendo que aquilo não era grave e despachou a petição… Essa lembrança da nossa fala solitária no dia do leilão é uma das mais engraçadas em minhas memórias… Definitivamente, eu me diverti muito nos anos 90, com todas essas experiências e com o contato com o público….
No Fórum Ruy Barbosa muitas vezes eu me perguntei o que aconteceu com tudo aquilo que se perdeu. As pessoas hoje em dia acreditam que tudo será resolvido com agressividade e hostilidade, que acontecem de ambos os lados do balcão. Terá sido somente o balcão físico que mudou? Será que o vidro teve todo esse poder? Ou será que nossa sociedade mudou, nossos valores se deterioraram e nossa humanidade se perdeu no individualismo exacerbado pelas redes sociais? Hoje mal conseguimos entender qual o processo que a pessoa quer ver, porque ela está mais atenta à tela do seu celular do que ao atendente de carne e osso à sua frente.

Mas como uma boa sonhadora, cujos sonhos não se enterraram nos 30 anos de serviço a serem completados no dia 06 de fevereiro de 2021, eu ainda acredito que o balcão é um palco onde pode se encontrar a humanidade, o riso, a gentileza, a cooperação. Minhas memórias mais doces estão no balcão!
Scheilla Brevidelli é servidora do TRT-2 desde 1991. Formada em Psicologia e em Direito, atou na primeira e na segunda instâncias. É poetisa e possui três livros publicados: “Flores que voam”, “Hilstianas v.1” e “Seu escrito era uma voz”. Mantém ainda um blog, o “Uma Prosa Boa”, e um perfil no Instagram, o @scheillabrevidelli_arte. Atualmente, está lotada na Seção de Destinação Documental.
Este texto foi publicado no contexto da campanha “80 anos em Memórias”, que integrou as atividades em comemoração aos 80 anos de instalação da Justiça do Trabalho da 2ª Região, realizadas pelo Centro de Memória do TRT-2 no ano de 2021. Mais contribuições de servidores, servidoras, magistrados e magistradas do TRT-2 (da ativa e aposentados) podem ser lidas aqui.

Memórias Trabalhistas é uma página criada pelo Centro de Memória do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, setor responsável pela pesquisa e divulgação da história do TRT-2. Neste espaço, é possível encontrar artigos, histórias e curiosidades sobre o TRT-2, maior tribunal trabalhista do país.
Acesse também o Centro de Memória Virtual e conheça nosso acervo histórico, disponível para consulta e pesquisa.
É um prazer participar desse espaço do blog e poder compartilhar o tesouro das minhas memórias, com tão poucos registros fotográficos numa época analógica, sem smartphones!! Ficou linda a edição das fotos!!! Gratidão!!!
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