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BENEDICTA SAVI: UMA VIDA CHEIA DE ATITUDES

Foi em março de 2019 que os servidores do Centro de Memória do TRT-2 tiveram o prazer de serem recebidos por Benedicta Savi em sua casa. Ainda éramos estranhos para a colega servidora aposentada, contudo, ela já era nossa conhecida.

Desde as primeiras pesquisas realizadas pelo setor em 2018, logo após sua criação, as referências a Benedicta e ao seu companheiro, o juiz trabalhista Carlos de Figueiredo Sá, já apareciam e despertavam o interesse e curiosidade da equipe do setor.

Quem acompanha o trabalho do Centro de Memória do TRT-2 sabe que o mote que move as pesquisas do setor é “contar a história das pessoas, para assim, contar a história do Regional“. Por isso, acessar os relatos de uma servidora que trabalhou na jovem Justiça do Trabalho da década de 1960 e presenciou um contexto de duras medidas autoritárias do Estado brasileiro, pareceu-nos uma forma adequada de reconstituir esse período, da perspectiva de quem o enfrentou, como servidora pública, mas, principalmente, como uma mulher preocupada com os rumos de seu país.

Essa simpática e cativante senhora, que hoje alterna sua rotina entre os cuidados com a família e as viagens com amigos, ingressou como servidora do TRT-2 em 1963. Enfrentou a perseguição política da época, foi demitida e obrigada a se exilar. Conseguiu sua reintegração ao órgão e a merecida aposentadoria somente em 1989. Não sem antes enfrentar muitos desafios fora do país. Nas palavras da própria Benedicta, teve “uma vida cheia de atitudes”.

Servidores do Centro de Memória do TRT-2 durante a gravação da entrevista com as irmãs Savi (Benedita, a segunda da esquerda para a direita e Maria Antônia, quarta). Fonte: acervo TRT-2

Sua história de frequentes desterros confunde-se com a de vários outros brasileiros que tiveram seus direitos cassados ou foram perseguidos. Apresentar a narrativa de sua trajetória, por suas próprias palavras, parte tanto da intenção do Centro de Memória do TRT-2 de homenagear nossos colegas que já passaram pela Justiça do Trabalho, quanto de realizar uma ode à Democracia. A história nos é uma grande professora, mas como toda boa professora, precisa ser escutada e respeitada.

Sendo assim, o Centro de Memória do TRT-2 disponibiliza o quarto episódio do projeto Memórias Narradas, apresentando a trajetória de Benedicta Savi. A série de entrevistas, realizadas ao longo do ano de 2019 com servidores e magistrados aposentados, busca relembrar alguns de seus mais marcantes momentos no TRT-2 e, assim, reconstituir parte da história do órgão por meio das memórias das pessoas que nele atuaram.

O lapso de tempo entre a gravação e a publicação da entrevista se deu pelas dificuldades trazidas pela pandemia de Covid-19, que impediu que o projeto seguisse com sua programação normal. Nesse ínterim, recebemos a triste notícia de que a irmã de Benedicta, Maria Antônia Savi, havia falecido (em 3 de dezembro de 2020). Também servidora aposentada do TRT-2 (atuou de 1962 a 1980), Maria Antônia foi entrevistada pelo Centro de Memória do TRT-2 em 2019, e um dos próximos episódio do projeto “Memórias Narradas” tratará da sua trajetória.

Maria Antônia e Benedicta Savi são duas mulheres com trajetórias impressionantes, por meio das quais é possível relembrar e debater momentos importantes da história do Brasil e da Justiça do Trabalho. Com o projeto “Memórias Narradas” o Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região busca tornar pública parte dessa história, por meio da valorização e divulgação das trajetórias e memórias de pessoas que atuaram nessa justiça especializada.

O caminho até Benedicta Savi

Em 2018, quando o Centro de Memória preparava a primeira edição da exposição “Memória do TRT-2: uma construção coletiva”, sua equipe se deparou com um registro no Relatório Anual de Atividades do TRT-2, de 1969, sobre a aposentadoria compulsória de quatro magistrados do Regional: Carlos de Figueiredo Sá, Fernando de Oliveira Coutinho, Alfredo de Oliveira Coutinho e Abraão Blay.

Tal decisão foi fundamentada no Ato Institucional 5 (AI-5), promulgado em dezembro de 1968, e que trouxe uma das fases mais duras do Regime Militar, permitindo que cidadãos tivessem seus direitos políticos legalmente cassados diante de suspeitas de envolvimento em atos julgados subversivos, ou por criticarem o governo.

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Trecho do Relatório Anual das Atividades da Justiça do Trabalho de 1969, no qual se faz menção às aposentadorias compulsórias de magistrados com base no AI-5. Fonte: acervo TRT-2.

O AI-5 foi o golpe definitivo nos resquícios do estado democrático de direito no Brasil, colocando à margem da sociedade todos os opositores do governo instituído, obrigando muitos a se exilarem para não sofrerem com a perseguição do Estado.

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Entre outras medidas, o AI-5 estabeleceu o poder do presidente da República de destituir de seus cargos, de forma sumária, servidores, políticos oficialmente eleitos e juízes. Fonte: Hemeroteca da Biblioteca Nacional.

Naquele momento, interessava-nos saber um pouco mais sobre esses magistrados e sua atuação, no sentido de compreendermos o que tinha justificado decisão tão sumária. Entre as idas e vindas da pesquisa, o servidor do TRT-2 Flávio Lopes da Silva, lotado na Seção de Registros Funcionais de Magistrados, lembrou-se de uma colega sua, que uma vez contou a história de um encontro.

Em férias na década de 1970, essa amiga teria se encontrado com uma servidora, companheira de um juiz que teve problemas com a Ditadura. Ambos estavam exilados no Uruguai. A servidora era Benedicta Savi, que além de ter sido companheira de Carlos de Figueiredo Sá, também teria sido perseguida pela Ditadura, sendo obrigada a deixar seu cargo no TRT-2 e a sair do país. Depois de uma licença, Savi, supostamente, teria pedido sua exoneração.

Eram muitos caminhos possíveis para a reconstituição dessa narrativa, entre lembranças de Flávio e sua colega, informações dispersas nos Relatórios de Atividades do Tribunal sobre juízes aposentados compulsoriamente, e uma servidora no exílio.

Ao pesquisarmos sobre Benedicta Savi, chegamos até sua ficha funcional e descobrimos que ela não tinha pedido exoneração, mas, sim, havia sido demitida por abandono de cargo, após uma licença de dois anos. No processo de demissão, descobrimos ainda dois fatos: que ela tinha se exilado e que o suposto abandono de cargo se deu pela impossibilidade de retornar ao país, tendo em vista que era procurada pelas autoridades policiais brasileiras.

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Detalhe da ficha funcional de Benedicta Savi. Fonte: acervo TRT-2.

Também descobrimos que, além dela, dois de seus irmãos foram servidores do TRT-2: Oswaldo Savi e Maria Antonia Savi. O primeiro, assim como a personagem de nosso vídeo, sofreu um processo administrativo, muito nebuloso, e foi demitido. Já a irmã, Maria Antonia, chegou a ser levada por agentes do DOPS para depor, além de ter convivido por 15 anos com a perseguição constante de agentes do governo nos locais que frequentava – inclusive na ida diária ao trabalho.

Foi assim, que nos interessamos pela história da família Savi e decidimos reconstituir tais trajetórias, começando pela de Benedicta, que nos conta um pouco de sua vida no vídeo produzido pelo Centro de Memória do TRT-2, que constitui o quarto episódio do projeto “Memórias Narradas”, disponível abaixo.

A transcrição da íntegra da entrevista com Benedicta Savi, para o projeto “Memórias Narradas”, você pode ler aqui.

Uma trajetória

Benedicta Savi ingressou no TRT-2 em 23 de maio de 1963 como auxiliar judiciária. Na época, era muito comum que funcionários fossem convidados a trabalhar no TRT-2, ou fossem indicados por juízes e servidores, tendo em vista que os concursos não eram uma política usual até então e a demanda pela Justiça do Trabalho crescia de forma considerável.

Foi nomeada como interina pelo presidente do TRT-2 Décio de Toledo Leite (pai de Luiz Antônio de Toledo Leite, personagem do segundo episódio do projeto “Memórias Narradas” e de Décio Luiz de Toledo Leite e Renée Alice Garcia Leite, que também participam desta série). Segundo a própria Benedicta, a nomeação aconteceu após indicação de Carlos de Figueiredo Sá, com quem já tinha um relacionamento. Logo depois, em 1964, Benedicta foi aprovada em concurso e passou a integrar definitivamente os quadros do TRT-2.

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Detalhe da ficha funcional de Benedicta Savi, com as informações da sua entrada no TRT-2. Fonte: acervo TRT-2.

Na década de 1960, Benedicta se lembra do trabalho como datilógrafa de audiência, do qual gostava muito, e dos presidentes do TRT-2 com os quais trabalhou, em uma época em que o Tribunal era composto por apenas nove juízes de tribunal (como eram denominados os desembargadores) e ficava localizado na sobreloja do prédio da rua Rego Freitas, no centro de São Paulo.

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Benedicta Savi (primeira a partir da direita) no início da década de 1960, pouco antes de entrar no TRT-2. Foto: acervo Benedicta Savi.

Somente em 1964 o Tribunal será transferido para outro prédio, na rua Brigadeiro Tobias, no qual também foram instaladas a Secretaria e a Biblioteca do Tribunal, permanecendo as juntas no antigo prédio da Rego Freitas.

Benedicta trabalhou ainda na Junta de Conciliação e Julgamento de Santo André e mais tarde foi lotada na Biblioteca, onde ficou até ser demitida por abandono de cargo, em 1972.

Em 1969, seu companheiro, o juiz trabalhista Carlos de Figueiredo Sá, passou a ser perseguido pelo DOPS, devido ao seu envolvimento com pessoas e ideias consideradas subversivas. O magistrado já era monitorado há algumas décadas pelas autoridades policiais, existindo registros de suas atividades desde a Era Vargas.

O juiz Carlos de Figueiredo Sá e sua ficha no Departamento de Ordem Política e Social (Dops).

Na tentativa de localizar Carlos, primeiro os policiais foram até a faculdade onde ele dava aulas na cidade de Taubaté (SP). Depois, realizaram buscas no Tribunal, na residência de Carlos e na casa da própria Benedicta. Diante da situação, o magistrado foi para o Rio de Janeiro e se hospedou na casa do irmão.

Do Rio de Janeiro, disfarçado em uma comitiva de empresários que participariam de um evento no Paraguai, relacionado às tratativas da construção da Usina de Itaipu e contando com a ajuda de amigos de Benedicta, Carlos conseguiu chegar ao Paraguai, passou pela Argentina e se estabeleceu em Montevidéu, no Uruguai – trajetória acompanhada de perto por Benedicta.

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Publicação do jornal “Folha de São Paulo”, de 16 de maio de 1969, na qual Carlos de Figueiredo Sá aparece como terrorista procurado pelo DOPS. Fonte: acervo Folha.

Segundo Benedicta, Carlos Sá possuía um longo histórico de envolvimento com questões sociais e políticas. Participou do movimento Constitucionalista de 1932, era um simpatizante das causas de esquerda e opositor da Ditadura de então, características que o colocaram na mira da polícia política. Contudo, Benedicta foi enfática em defender que Carlos não chegou a ser filiado ao Partido Comunista, e que eles jamais teriam participado de atividades violentas ligadas à ala mais radical da oposição ao Regime, ainda que tivessem proximidade com figuras como Carlos Prestes, Carlos Lamarca e Carlos Marighella.

Por sua vez, Benedicta relata que foi levada para o lado da resistência muito mais por seus valores morais e por um sentimento de justiça, do que propriamente por envolvimento prévio com os movimentos de esquerda.

Ela conta na entrevista que uma das experiências que despertou sua atenção para tais causas foi um episódio, no qual, como funcionária de uma empresa de colchões, teria sido coagida pelo seu patrão a testemunhar em um processo contra uma colega de trabalho: a empregada era uma “moça, jovem, mãe de família”, que na época estava envolvida com a representação sindical dos empregados dessa empresa e era acusada de fomentar um movimento grevista na fábrica. Em um rompante de indignação e sentimento de injustiça, recusou-se a testemunhar contra a colega e pediu demissão. A partir de então, passou a ler e a se informar sobre questões políticas e sociais e a envolver-se com ideias progressistas.

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O primeiro desterro

Já como servidora, Benedicta nos relata como pairava entre os colegas da Justiça do Trabalho uma aura de medo durante a década de 1960.

As pessoas temiam que atitudes banais do cotidiano pudessem conectá-las a ideias e pessoas consideradas subversivas e, assim, gerar represálias. Lembrou da ocasião na qual uma amiga juíza se assustou ao receber emprestada uma apostila na qual constava uma dedicatória de Carlos Sá. A mera menção ao juiz procurado poderia ser uma sentença definitiva para a carreira de um magistrado.

Um pouco antes de ser obrigada a sair do Brasil, Benedicta esteve envolvida em um episódio inusitado, no qual ajudou a esconder Carlos Lamarca, utilizando seu Fusca para transportá-lo. Essa história é contada no livro “O homem que morreu três vezes”, de Fernando Molica. Lamarca foi um guerrilheiro brasileiro, condenado pelo exército como desertor, morto em 1971 em uma operação militar que o localizou na Bahia.

Com Carlos já refugiado no Uruguai, em 10 de abril de 1970, Benedicta viajou para visitá-lo no exílio e comemorar o aniversário de seu companheiro. Foi durante essa viagem que tomou conhecimento, por meio de um primo, que a polícia estava em seu encalço. Seu apartamento tinha sido invadido e até na casa de seus pais a polícia esteve, realizando buscas e constrangendo seus familiares.

Sua irmã, Maria Antônia Savi, também servidora do TRT-2, foi levada para interrogatório e passou a ser vigiada de perto pelas forças de inteligência. Seu irmão Oswaldo, por sua vez, foi vítima de um processo administrativo cheio de incongruências, com participação do SNI, que o levou à demissão. Mais tarde a Justiça Federal reconheceu como inexistente a motivação para a sua demissão e ele foi inocentado e reintegrado.

Trecho do processo de demissão do servidor Oswaldo Savi. Fonte: acervo TRT-2.

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Diante desse contexto, Benedicta resolveu ficar no Uruguai em companhia de Carlos. Conseguiu uma licença de dois anos no TRT-2, o que não foi suficiente, já que a perseguição política permaneceu até o advento da Anistia, em 1979. Não pôde voltar e sofreu um processo de demissão. Precisou escolher entre manter o cargo ou ser presa, quem sabe torturada ou coisa pior. Exemplos não faltavam de colegas que haviam passado por tais ordálios, alguns desaparecidos e sem um enterro digno até os dias de hoje.

Foi assim, como consta nas peças de defesa de seu processo administrativo de reintegração, que se iniciou sua “via-crucis”. Como a própria Benedicta bem definiu: “Eu saí para passar uma semana e fiquei dez anos fora do Brasil“. No exílio, passará também pela França e Portugal.

Benedicta Savi
Ficha de Benedicta Savi, no Departamento Estadual de Ordem Política e Social (Deosp). Fonte: acervo Público do Estado de São Paulo.

Amigos ilustres e homônimos infames

No Uruguai, ficou por pouco tempo, mudando-se para o Chile com a vitória de Salvador Allende como presidente e a instauração de um governo progressista no país. Lá, conviveu com ilustres brasileiros, como Geraldo Vandré, conhecido cantor e compositor, com quem frequentava manifestações e dividia serenatas e macarronadas; e Darcy Ribeiro, intelectual brasileiro, de quem foi um amor platônico, segundo suas próprias palavras.

Com Darcy participou do projeto de revisão do Código Civil chileno, a pedido do próprio presidente chileno, Salvador Allende, acompanhada de Carlos de Figueiredo Sá e outros intelectuais exilados no país. Nesse país, recebeu muitos amigos brasileiros em sua casa, acolhendo desterrados como ela. Lá também enfrentou um dos mais graves terremotos da história, em 1971.

Manchetes de jornais noticiando o terremoto de 1971, que teve seu epicentro no Chile. Fonte: Hemeroteca da Biblioteca Nacional.

Em 1972, o casal viajou para a França, e logo em sua chegada a Paris, descobriram pelo rádio que um golpe de Estado derrubara Allende. Diante das convulsões políticas no país latino-americano, o casal foi obrigado a deixar casa e pertences para trás e mais uma vez se exilar apenas com uma malinha e a roupa do corpo. Dessa vez em Paris.

Foi na França que ocorreu a sua única condenação de fato, por falsificar passaportes para amigos poderem se refugiar no país. Aliás, foi na França que Benedicta e Sá passaram por um dos maiores apuros de suas trajetórias.

À época, enfurecia, mas também aterrorizava a polícia francesa, o terrorista Carlos Chacal, pseudônimo de Ilich Ramírez Sanches, um mercenário de esquerda venezuelano, responsável por diversos atentados terroristas.

Era procurado pelo mundo todo e, na década de 1970, ficou conhecido por uma fuga cinematográfica, na qual conseguiu escapar de uma abordagem policial em seu apartamento – ocasião na qual matou dois agentes de elite da polícia francesa. No quarto foi achado um exemplar do romance de Frederick Forsyth, “O dia do Chacal”, que acabou gerando a sua alcunha.

Ele também foi um dos idealizadores e executores do sequestro de membros da OPEP – Organização dos Países Exportadores de Petróleo  em 1975, que resultou na morte de três pessoas e em mais uma fuga cinematográfica de Carlos Chacal.

Da esquerda para a direita: pôster do filme baseado no livro de Frederick Forsyth (fonte: IMDB); capa da primeira edição do livro “Dia do Chacal”, que renderia a alcunha do terrorista famoso (fonte: Wikipedia); o sequestro encabeçado por Carlos Chacal teve repercursão mundial, e ele passou a ser um dos homens mais procurados da época (fonte: acervo Folha).

Foi graças a Carlos Chacal que a polícia francesa acabou chegando a Carlos Sá. No meio das investigações, a polícia encontrou no apartamento de Turco, um informante de origem libanesa, também assassinado por Chacal em 1975, uma fotografia. Nela aparecia uma sobrinha de Carlos Sá, posteriormente identificado pelas autoridades francesas. Eram muitas coincidências: mesmo nome, latino-americano e de esquerda. Como Benedicta mesmo nos disse, “Naquela época, exilado e terrorista era tudo a mesma coisa para a polícia“.

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Tinha tudo a ver – só que nada, ao mesmo tempo. Em buscas na casa de um primo de Sá, residente em Paris, foi encontrada uma pistola Bereta, de propriedade do juiz aposentado. Depois, descobriu-se, também, em buscas na casa do casal, um baú contendo documentos falsificados. Isso bastou para que a polícia fizesse as conexões, e Carlos e Benedicta fossem presos.

A confusão foi desfeita, já que Carlos e Benedicta passavam longe de serem terroristas. Mas não sem antes passarem 12 horas presos para interrogatório na polícia francesa.

Ficaram em celas separadas, que tinham apenas uma janela com uma pequena cortina externa, por onde eram vigiados pelos policiais franceses. Permaneceu, porém, a acusação de falsificação de documentos, delito que Savi confessou, tendo em vista que fazia as alterações dos passaportes para permitir a estadia de seus amigos no exílio e para que arrumassem um trabalho legalizado na França.

As opções, portanto, eram: ela ser presa por um curto período, ou serem ambos expulsos da França. Mais uma vez o casal precisou abandonar sua casa e seus pertencentes e partir para outro país. Dessa vez, Portugal, período que Benedicta descreve como a “melhor fase” do seu exílio, na qual teve a possibilidade de conviver novamente com sua língua nativa.

A volta para casa e a reintegração ao TRT-2

No final da década de 1970, já se falava em anistia no Brasil e muito exilados políticos ensaiavam sua volta ao país. Carlos, assim, resolveu retornar. Benedicta nos conta como ele foi dado pelos jornais como “boi de piranha”, por ter sido o primeiro exilado a retornar ao Brasil, em março de 1978, sem qualquer garantia de que não seria preso. Seu exemplo serviu a muitos outros.

Reportagem do jornal Folha de S.Paulo, do dia 8 de março de 1978, destaca o retorno do juiz Carlos de Figueiredo Sá ao Brasil, após nove anos de exílio. Fonte: acervo Folha.

Alguns poucos meses depois, em maio de 1978, Benedicta também decidiu retornar. Sua chegada foi anunciada nos jornais e ela é enfática em dizer que essa foi uma das poucas mudanças programadas de sua vida. Dessa vez pôde arrumar suas malas com calma (e as de Carlos também), organizar sua despedida e partir sem ser obrigada a deixar tudo para trás. Estava voltando para casa.

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Nota de jornal com informações sobre o retorno de Benedicta Savi em 1978. Fonte: Jornal da Bahia.

Em sua chegada de navio, foi abordada pelos agentes do governo logo no desembarque, e intimada para prestar depoimento, sendo liberada depois. Uma das fotos em destaque em sua casa, disposta em um porta retrato prateado, foi tirada no dia da sua chegada. Nela vemos um casal elegante, observado ao fundo por agentes da polícia.

Porta-retrato com foto de Benedicta Savi em companhia de Carlos Sá, no dia de sua chegada do exílio. Ao fundo é possível ver os agentes do Dops. Fonte: acervo pessoal Benedicta Savi.

De volta ao seu país, e não mais considerada uma ameaça, Benedicta retomou sua vida. Atuou como advogada e trabalhou no Memorial da América Latina a convite do amigo Darcy Ribeiro.

Nesse ínterim, seu amigo, o juiz aposentado do TRT-2 Hélio Tupinambá Fonseca (presidente do Tribunal entre 1954 e 1959) a incentivou a entrar com um processo requerendo a anulação de sua demissão e sua reintegração aos quadros do Regional. Hélio também chegou a sofrer represálias do Regime Militar, sendo aposentado uma segunda vez, em 1969, com fundamento no AI-5 (história contada em detalhes no texto produzido pelo Centro de Memória sobre a trajetória do magistrado). O próprio Hélio Fonseca se prontificou a ser seu advogado, tendo em vista que já tinha se aposentado da carreira de juiz do trabalho. Porém, o primeiro processo de 1979 não logrou sucesso, e foi somente em 1989, após ajuizar nova ação, que foi efetivada a sua reintegração.

Da esquerda para a direita: trecho da defesa de Benedicta Savi no processo que culminou em sua demissão; trecho do parecer da comissão responsável pelo processo; sentença do processo que culminou na demissão de Benedicta Savi. Fonte: acervo TRT-2.

Como Benedicta descreve: “O Processo [de 1988] foi um sucesso, porque o relator deu uma sentença muito bonita, que foi acompanhada por unanimidade pelos demais desembargadores”.

O processo nº 35 de 1988 resgata os argumentos da defesa presente nos autos de 1972 (nº 16/1972), que tinham resultado em sua demissão, revelando de que forma contextos diferentes geraram sentenças diferentes. Em 1972,  a servidora Clarinda de Pauli foi designada para representar e defender Benedicta no processo de demissão, tendo em vista que a ré permanecia no exílio, sem poder voltar ao Brasil. A defesa apresenta todas as informações sobre a perseguição à Benedicta e o argumento de que Savi não era filiada ao Partido Comunista. Contudo, a mera proximidade e amizade com pessoas relacionadas aos movimentos de contestação ao Regime Militar já eram elementos suficientes para que Savi fosse fichada extraoficialmente como pessoa subversiva e perigosa.

“Sua situação física e seu precário estado de saúde (…) fazem com que tema por sua vida, diante das consequências de ser acusada de subversiva, situação em que sofreria detenção e violências.

Não tem pois, condições para voltar a convivência dos seus nem para reassumir o emprego. O prazo de 2 anos de sua licença já está por findar e quer assim manifestar, por esta representação, a sua intenção de não abandonar o emprego, continuando como funcionária pública federal, membro do quadro dos servidores desse Tribunal. Só não reassume, diante de força maior acima alegada.”

Trecho da defesa de Benedicta Savi, fls. 18, Processo Administrativo SPE nº 16/72.

Nesse processo, que rendeu sua demissão por abandono de cargo, constaram as informações das ações da polícia na casa da família Savi, que não foram consideradas suficientes para indicar a suposta perseguição e riscos sofridos por Benedicta. O parecer afirmou: “Ora, se ela não tem contas a prestar com as autoridades policiais, não vemos razão para se hominizar, faltando, mais que o permitido legalmente, ao serviço“. Foi, dessa forma, demitida do cargo em 1972.

Dezesseis anos depois, a servidora Maria Lavínia Torres Ribeiro (que atuou como diretora-geral do TRT-2), em seu testemunho informou no processo de reintegração de Benedicta (nº 35 de 1988), que a Operação Bandeirante circulava pelos corredores do Tribunal à caça de Carlos Sá, Benedicta Savi e outros supostos subversivos, durante a década de 1960 e 1970.

Ela descreve, em seu depoimento, como policiais estiveram mais de uma vez no TRT-2, requisitando pastas funcionais de servidores e magistrados sem dar explicações dos motivos. Alguns desses procurados nem mesmo estavam sendo oficialmente processados ou com prisão preventiva decretada.

Na parte de cima: Maria Lavínia Torres Ribeiro, servidora do TRT-2 entre 1948 e 1979, e seu testemunho nos autos do processo 35/1988; Embaixo: Bento Pupo Pesce, magistrado do TRT-2 entre 1956 e 1990, e seu voto favorável à reintegração de Benedicta. Processo 35/1988. Fonte: acervo TRT-2.

Diante das evidências da perseguição política que motivou seu afastamento, considerando ainda, que a Emenda Constitucional nº 26 de 1985  já havia concedido anistia aos servidores civis ou empregados demitidos ou dispensados por motivação exclusivamente política, o desembargador Bento Pupo Pesce elaborou voto favorável à reintegração de Benedicta e foi seguido por unanimidade pelos demais.

Muitas histórias

Benedicta se aposentou logo após sua reintegração, ainda em 1989. Como nos contou, começou a trabalhar com 14 anos, e somando os anos de exílio, já havia extrapolado o tempo necessário de contribuição para se aposentar. Foi servidora por menos tempo do que gostaria, mas é enfática em dizer como os juízes do TRT-2 tinham um senso de responsabilidade muito forte em relação as suas decisões e como o ambiente de trabalho era sério e respeitoso.

Esteve junto de Carlos de Figueiredo Sá até o falecimento de seu companheiro em 1982, após ele lutar contra uma grave doença.

Continuou atuando como advogada por um tempo, mas na época da entrevista se definiu como “ocióloga”. Disse que até fez um cartão com o tal “cargo”. Contudo, ainda tem uma vida muito ativa de viagens e cuidados com a família. Em nossa última visita à sua casa (em fevereiro de 2020) nos contou de sua últimas viagens e, depois de quase duas horas de conversa, interrompeu a visita, porque precisava buscar a sobrinha na escola.

São muitas as histórias e é com uma ponta de “despeito” que escutamos a narrativa de como Geraldo Vandré vivia em sua casa, fazia macarronada e certa vez compôs uma música em sua sala na companhia da sobrinha de Savi. Com Vandré também tem boas lembranças das passeatas “pacíficas e alegres no Chile”, e fala com carinho de Darcy Ribeiro (o “Geniozinho do Brasil”), de quem foi grande amiga.

Outras lembranças talvez reverberem mais forte nos ouvidos de sociólogos e antropólogos, caso no qual se enquadra o autor desse texto. Benedicta cita de forma corriqueira, como quem conta uma lembrança singela passada com uma velha amiga, das reuniões que realizava no exílio para debater a tese de Heleieth Saffioti: “A mulher na sociedade de classes”, um dos cânones da sociologia brasileira. Um detalhe: era amiga da autora e fala disso com muita naturalidade – como se Heleieth não fosse uma das mais brilhantes orientandas de Florestan Fernandes e precursora do debate acadêmico sobre os direitos das mulheres.

Benedicta fez muito, mas também sofreu muito. Ajudou colegas a se esconderem da polícia política, alguns deles ilustres. No exílio, deu apoio aos amigos e suas famílias, e arriscou-se para conseguir documentos para que eles pudessem trabalhar e sobreviver longe de sua pátria. Amargou as despedidas e os desterros, sem poder voltar ao seu país e sem poder se estabelecer em lugar algum.

Em sua casa, ao rever fotos da festa de bodas de ouro de seus pais, lembrou com pesar de como não pôde estar presente na ocasião. Estava no exílio, sempre deixando para trás casa, família, amigos e histórias, levando consigo somente sua mala, seus ideais e o companheiro de uma vida.

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Festa de comemoração de bodas de ouro dos pais de Benedicta, da qual ela não pôde participar, por estar exilada. Fonte: fundo Benedicta Savi / acervo do TRT-2.

Foi tratada como terrorista, sem nunca ter pegado em armas. Seu crime, segundo suas próprias palavras, foi o “crime de pensar diferente”. Tanto que, em 1978, Carlos de Figueiredo Sá retornou e mais tarde a própria Benedicta, em um momento em que suas presenças no país não representavam a suposta ameaça de anos anteriores.

Benedicta fala dos seus amigos e companheiros nos anos fora do país sem afetação. Não glamouriza o exílio e nos faz pensar em como aquela viagem dos sonhos para exterior (na visão descontextualizada de alguns), pode ser uma jornada árdua e injusta. Porém, como pesquisadores e entusiastas das grandes narrativas, não podemos deixar de nos maravilhar com as “aventuras” de uma mulher que cruzou sua trajetória com a de ilustres como Darcy Ribeiro, Gilberto Freyre e Geraldo Vandré, e outros infames, como Carlos Chacal, que até os dias de hoje mexem com a imaginação de muitos.

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Benedicta (primeira a partir da direita) sempre foi muito atuante em movimentos de defesa e ampliação dos direitos das mulheres. Fonte: fundo Benedicta Savi / acervo TRT-2.

Contudo, ela nos puxa para a realidade em todo momento com sua forma de contar tais histórias. Mantém nossos pés no chão, faz-nos pensar nas injustiças, nos medos, mas, principalmente, na necessidade de manter a esperança viva. Retrato de um momento em que a polarização política gerou o autoritarismo e o desejo de supressão de direitos e de vozes dissonantes, sua história se torna desconfortavelmente contemporânea. Deixa-nos a lição de como excessos e intolerâncias cotidianas, quando deixam de ser mediados por valores democráticos, podem gerar uma tragédia política.

O que encontramos ao conhecê-la foi uma mulher orgulhosa de seu passado, de postura imponente, mas de alegria e energia contagiantes. Por meio dela, foi possível cruzar a história do TRT-2 com eventos fundamentais da história do Brasil. Sua trajetória traz elementos e um ponto de vista sobre como a Justiça do Trabalho lidou com o contexto político dos anos de 1960 e 1970 e, principalmente, sobre a forma como uma mulher traçou seu próprio caminho, como quis e como pôde, sem desistir.

Memórias Trabalhistas é uma página criada pelo Centro de Memória do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, setor responsável pela pesquisa e divulgação da história do TRT-2. Neste espaço, é possível encontrar artigos, histórias e curiosidades sobre o TRT-2, maior tribunal trabalhista do país.

Acesse também o Centro de Memória Virtual e conheça nosso acervo histórico, disponível para consulta e pesquisa.


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Publicado por Lucas Lopes de Moraes

Antropólogo, graduado em ciências sociais, possui mestrado e doutorado em antropologia no Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da USP. Possui experiência em pesquisa e análise de dados qualitativos e em projetos de acervo. Colecionador de discos, apaixonado pela etnografia e pelo trabalho de campo, defende que as trajetórias de pessoas e coisas são a maior fonte de conhecimento. É servidor do TRT-2 desde 2015.

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