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UMA SERVIDORA EXEMPLAR

Em seus primeiros meses de trabalho, após a criação do setor em 2017, a equipe do Centro de Memória do TRT-2 conheceu a história de Carlos de Figueiredo Sá, magistrado que aparecia como um dos pioneiros do Regional, membro das Juntas de Conciliação e Julgamento desde a década de 1930, antes mesmo da instalação da Justiça do Trabalho em 1941.

Em 1969, Carlos, junto com mais três colegas juízes, foi aposentado compulsoriamente pelo AI-5 por razões políticas, após mais de 30 anos dedicados à magistratura trabalhista. Sua história nos levou até a sua companheira, Benedicta Savi, servidora do TRT-2, que também foi perseguida politicamente e teve trajetória marcada pelo exílio junto a Carlos de Figueiredo Sá.

Benedicta tinha dois irmãos que também atuaram na Justiça do Trabalho da 2ª Região: Oswaldo e Maria Antônia. Todos ingressaram no TRT-2 na década de 1960.

Oswaldo Savi sofreu a mesma sina da irmã Benedicta: foi processado e demitido. Mais tarde reintegrados no Regional, com o julgamento de novos processos que comprovaram as injustiças sofridas, suas histórias chamaram a atenção do Centro de Memória. A trajetória de Benedicta Savi foi relatada no quarto episódio do projeto “‘Memórias Narradas”.

Entre os três irmãos, foi Maria Antônia Savi, a mais velha, quem mais tempo atuou efetivamente no Regional. Seus irmãos foram impedidos de permanecer por toda a carreira no TRT-2. Mas ela, apesar de também sofrer com as consequências da perseguição política da época, ainda que não tivesse uma relação direta com qualquer movimento de resistência ao governo, permaneceu como servidora das juntas de conciliação e julgamento do Regional.

No período em que Maria Antônia atuou no TRT-2 (nas décadas de 1960 e 1970), a Justiça do Trabalho se tornou um dos poucos recursos para que trabalhadores pudessem garantir condições justas de trabalho. A inflação comprometia o poder de compra dos brasileiros e o Governo Federal apertava o cerco contra os sindicatos. Era por meio de dissídios individuais e coletivos, que direitos podiam ser garantidos.

Maria Antônia seguiu um caminho que foi o de muitos colegas da época. Dedicou a maior parte de sua vida de trabalhadora aos expedientes da Justiça do Trabalho. Integrou uma geração que viu o TRT-2 crescer em demanda e importância, e enfrentou um momento no qual essa expansão impôs uma severa escassez de recursos. Os servidores e magistrados desse período foram responsáveis por manter o Regional em funcionamento, desdobrando-se diante da falta de estrutura e orçamento.

No sexto episódio do projeto Memória Narradas, o Centro de Memória do TRT-2 apresenta a entrevista realizada com Maria Antônia Savi, servidora que ingressou em 1962 no TRT-2 e se aposentou em 1980, segundo ela: “sem nunca ter faltado ao serviço”. Foi um exemplo de comprometimento com o serviço público, e uma pessoa que passou uma vida ao lado de sua família, como filha e irmã dedicada.

Em dezembro de 2020 recebemos a triste notícia do falecimento de Maria Antônia Savi, que, aos 95 anos, ainda apresentava a lucidez e a simpatia da mulher que enfrentou os desafios do trabalho e da sociedade de sua época. Escolhemos o dia 19 de agosto para a publicação do vídeo e do texto sobre sua entrevista, pois nessa data, Maria Antônia Savi completaria 97 anos. Fica a homenagem do TRT-2 a essa servidora, com a esperança de que sua história possa inspirar outras pessoas.

A servidora do TRT-2, Maria Antônia Savi, em abril de 2019. Fonte: acervo TRT-2.

Conhecendo Maria Antônia Savi

Maria Antônia Savi nos recebeu em sua casa na cidade de São Paulo, em abril de 2019, onde morava com a irmã, Benedicta. Ali, a equipe do Centro de Memória foi tratada com tanta hospitalidade, que por lá ficamos mais do que esperávamos permanecer, o que fez com que tivéssemos que realizar uma segunda visita (e uma terceira, tempos depois).

Não somente pelo café e pelo clima aconchegante criado pelas duas senhoras, mas também pelas suas histórias, que, aliás, continuavam a ser criadas. Uma sobrinha, que acompanhou parte da entrevista, acabou contando que as tias teriam “aprontado” pouco tempo antes. Tinham ido, as duas irmãs (a mais nova com 83 anos!), dirigindo até o interior visitar alguns parentes. No caminho, perderam-se, gerando preocupação e comoção em toda a família. Demoraram, mas encontraram o trajeto, já no fim do dia. Tudo foi narrado por elas com extrema naturalidade – e entre muitos risos.

Chegamos até Maria Antonia ao pesquisarmos sobre a história do juiz trabalhista Carlos de Figueiredo Sá. A irmã de Maria Antônia, Benedicta Savi, teve um longo relacionamento com Carlos, e, junto com seu companheiro, foi perseguida pelo Regime Militar e precisou se exilar. Durante dez anos permaneceu fora do país, até conseguir retornar em 1978. Nesse período, sem conseguir renovar uma licença, foi demitida por abandono de cargo, situação que foi revertida apenas em 1989, com sua reintegração aos quadros do Regional.

Já Maria Antônia Savi atuou no TRT-2 de 1962 a 1980. Apesar de não possuir envolvimento com a política da época, foi observada de perto pelas autoridades policiais. Precisou também lidar com essas questões políticas enquanto trabalhava na Justiça do Trabalho e dava apoio aos pais idosos, que também sofriam com a distância, as saudades e a preocupação em relação à filha Benedicta que permanecia no exílio.

Na primeira visita que o Centro de Memória realizou às irmãs Savi, o objetivo foi entrevistar Benedicta, que narrou sua trajetória. Naquela ocasião, demonstramos o interesse em entrevistarmos também Maria Antônia, tendo em vista que ela, por ter ficado no Brasil, e ter atuado tantos anos como servidora do TRT-2, poderia trazer um ponto de vista diferente sobre aquele período histórico. Sua resposta, simpática e cheia de genuína modéstia foi um simples: “Ah, mas eu não tenho nada para contar, minha história é comum, como a de muitos outros”.

Servidores do Centro de Memória do TRT-2, em companhia das irmãs Savi. Fonte: acervo TRT-2.

Depois de tantas entrevistas e pesquisas realizadas sobre a história da Justiça do Trabalho e do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, uma certeza já se estabeleceu na forma de atuação do Centro de Memória do TRT-2. A de que toda trajetória pessoal tem muito valor, e que todos temos algo a contar. A insistência permitiu que Maria Antônia rompesse com suas reservas, e, ao contar um pouco da sua trajetória, pudesse também valorizar seus colegas, servidores e magistrados da Justiça do Trabalho. Foram anos de dedicação à primeira instância, que ela descreveu em sua entrevista, que agora fica disponível ao público no sexto episódio do projeto “Memórias Narradas”.

A transcrição da íntegra da entrevista com Maria Antônia Savi, para o projeto “Memórias Narradas”, você pode ler aqui.

Do Campo à Metrópole

Nascida em 19 de agosto de 1925, na cidade de Jaú, no interior de São Paulo, filha de Lourenço Savi e Maria do Amaral Savi, Maria Antônia cresceu em uma família de pequenos produtores rurais, estabelecidos na região de Bocaina-SP. Segunda filha de seis irmãos, contou um pouco sobre sua infância, morando no interior. Foi criança de subir em árvore e brincar no campo com os irmãos.

Seus pais tinham uma “fazendinha”, que “rendia pouco” e, após a Quebra da Bolsa em 1929, não conseguiram mais se manter e mudaram-se para São Caetano do Sul, rumando em direção à Capital do estado.

“Meu pai tinha uma fazendinha e a vida na fazenda era uma delícia, né? Como criança, tive uma infância muito boa. Subia em árvores, brincava com meus irmãos, foi deliciosa mesmo a infância.”

Maria Antônia Savi, servidora do TRT-2 entre 1962 e 1980.

Depois das dificuldades enfrentadas com a quebra da bolsa de Nova Iorque, que repercutiu no Brasil e atingiu principalmente os produtores rurais, sua família se estabeleceu na zona metropolitana de São Paulo. A mudança efetiva para a Capital se deu somente na década de 1970, alguns anos antes de ela se aposentar.

Maria Antônia começou a trabalhar muito cedo, como operária da Companhia Lanifício São Paulo, localizada em Indaiatuba. Nessa empresa permaneceu de 1945 a 1953, corrigindo os erros nos tecidos. Era comum que mulheres atuassem nas empresas de tecidos como operárias. Um trabalho penoso, mas uma das principais portas de entrada para o mercado de trabalho para jovens de famílias menos favorecidas.

Em 1953, foi do chão da fábrica para o trabalho administrativo, assumindo cargo na prefeitura de São Caetano do Sul, onde permaneceu por quase dez anos (de 1953 a 1962). A maior parte desse tempo no setor jurídico. Durante esse período, Maria Antônia trabalhou por duas vezes com o prefeito Anacleto Campanella (1953-1957 e 1961-1965), que hoje dá nome ao estádio da cidade.

Durante esse período, cursou o “normal”, formando-se em 1958. Esse era um caminho comum para as jovens da época, que queriam dar seguimento aos seus estudos. As “Escolas Normais” formavam professoras e professores que lecionavam no grau primário de ensino. Segundo ela, seus pais eram pessoas humildes que incentivavam as filhas a estudarem, em uma época na qual as mulheres tinham pouco acesso à educação formal.

Funcionários em frente à Prefeitura de São Caetano do Sul, em 1953. Fonte: Fundação Pró-Memória de São Caetano do Sul.

Em 1962, Maria Antônia foi chamada para trabalhar na Justiça do Trabalho, a convite de Carlos de Figueiredo Sá, que, à época, já possuía um relacionamento com sua irmã, Benedicta.

Nesse período era muito comum a admissão de extranumerários por meio de indicação. Os concursos públicos não tinham sido implantados, e, quando ocorriam, os certames eram voltados apenas para promoção interna. A forma de ingresso era por meio de empréstimos de outros órgãos, entrevistas e indicações. Isso até 1963, quando o primeiro concurso público foi realizado no âmbito da 2ª Região Trabalhista.

Detalhe da ficha funcional de Maria Antônia Savi. Fonte: acervo TRT-2.

No caso de Maria Antônia, contou muito, também, sua experiência pregressa de quase dez anos de serviços prestados ao setor jurídico da Prefeitura de São Caetano do Sul, o que facilitou sua adaptação ao trabalho exigente das secretarias da primeira instância do TRT-2. Naquela época, a falta de material, de espaço e de funcionários assolava as juntas de conciliação e julgamento. A demanda era desproporcional aos recursos do Regional, sobrecarregando juízes e servidores.

O TRT-2

Maria Antônia começou sua carreira no TRT-2 como auxiliar judiciário interina, em 1962, sendo efetivada em 1964. Foi justamente a passagem anterior pelo serviço público que permitiu que ela fosse efetivada na Justiça do Trabalho, o que era previsto no artigo 50 da Lei 4242/1963.

Ingressou na 7ª Junta de Conciliação e Julgamento de São Paulo e, em 1964, passou a atuar na JCJ de Santo André, onde permaneceu por três anos, até retornar para a 7ª JCJ da Capital. Lá ficou até sua aposentadoria, em 1980.

Nessa época, ainda residia em São Caetano do Sul. Todos os dias, Maria Antônia fazia o mesmo trajeto para o trabalho: pegava o ônibus perto de sua casa e descia na estação Parque Dom Pedro II, de onde seguia a pé até o pequeno (e pouco apropriado) prédio da rua Rego Freitas, local onde as juntas ficaram instaladas até o final da década de 1960. Segundo Maria Antônia, o trajeto até o trabalho era algo prazeroso. Apesar de longo, ela “nem percebia” passar.

O Terminal D. Pedro II. Fonte: São Paulo Antiga.

Em 1970, com a inauguração do prédio da av. Ipiranga, Maria Antônia mudou-se com sua junta. Nas novas instalações, as condições de trabalho melhoraram. “Era um prédio mais novo, maior”, relembrou na entrevista concedida ao Centro de Memória.

Maria Antônia era uma servidora assídua, que “nunca faltava”, como fazia questão de frisar. Falava com orgulho de não ter faltas registradas em seu prontuário e ter se ausentado do trabalho apenas em situações de licença para acompanhar os pais ao médico, ou para auxiliar no tratamento de saúde dos familiares. A única questão capaz de tirar Maria Antônia do trabalho era o cuidado com a família.

A servidora gostava de seu trabalho no TRT-2, em um período em que as instalações precárias eram superadas pelo coleguismo existente entre os servidores e juízes. O contato com os advogados e jurisdicionados no balcão das secretarias também era algo de que Maria Antônia sentia saudades e fêz questão de ressaltar em sua entrevista. Naquela época, era comum conhecer todos os advogados que circulavam pelo TRT-2. Alguns deles, grandes referências para a advocacia trabalhistas até os dias de hoje, como Rio Branco Paranhos e Agenor Barreto Parente.

Tempos difíceis: o processo de Oswaldo

Maria Antônia lembrava-se com carinho do trabalho no TRT-2. Gostava de seu dia a dia na primeira instância. Afirmava não ter reclamações ou mágoas. Contudo, tinha lembranças tristes com relação ao tratamento dado aos seus irmãos.

Os irmãos de Maria Antonia, Benedicta e Oswaldo, ingressaram na Justiça Trabalho em um momento conturbado da política nacional. Em 1964, instaurou-se o Regime Militar no Brasil, que passou a tratar duramente as dissidências políticas. Sua família tinha amizade com Carlos de Figueiredo Sá, juiz trabalhista que passou a ser observado de perto pelos militares, devido ao seu envolvimento com movimentos de esquerda. Sua irmã, Benedicta, companheira de Carlos, também se envolveu com a política da época.

O casal Carlos de Figeuiredo Sá e Benedicta Savi: magistrado e servidora do TRT-2. Fonte: fundo Benedicta Savi / acervo TRT-2.

Em 1969, quando Carlos Sá foi aposentado compulsoriamente com base no Ato Institucional nº 5, o casal precisou se refugiar no exílio, trajetória contada em detalhes pela própria Benedicta em sua entrevista concedida ao Centro de Memória do TRT-2. Benedicta não pôde retornar ao Brasil, e, após não ter sua licença renovada, foi processada e demitida por abandono de cargo.

Já Oswaldo foi demitido em 1970, em meio a um processo dúbio.

Tudo começou quando o servidor tentou comprovar tempo de serviço na Prefeitura de Jataizinho, no Paraná, para conseguir sua efetivação e promoção na Justiça do Trabalho.

Ocorreu que, por uma “confusão” nos arquivos da cidade, primeiro foi informado ao TRT-2, por meio de ofício da Prefeitura local, que Oswaldo não tinha prestado serviços naquele município. Isso abriu precedente para que as certidões apresentadas fossem consideradas falsas. Semanas depois, outro ofício foi enviado pelo mesmo prefeito, afirmando que tinha sido cometido um erro, e que, de fato, Oswaldo tinha atuado na prefeitura, conforme alguns documentos encontrados no arquivo local.

Diante dos desencontros de informações, o TRT-2 solicitou ao Serviço Nacional de Informação – SNI, mesmo órgão responsável por investigar dissidentes políticos, que averiguasse a veracidade dos fatos, pois consideraram “suspeitas” as informações prestadas pelo prefeito de Jataizinho. Um tenente coronel foi destacado para verificar localmente os documentos. Lá, foi alegado que a gestão anterior tinha deixado os arquivos da prefeitura em total desordem, existindo apenas duas certidões que comprovavam que Oswaldo tinha atuado na cidade. Por sua vez, funcionários municipais, questionados pelo SNI, alegaram que não se recordavam de Oswaldo.

As informações do SNI foram apresentadas ao TRT-2, que decidiu demitir Oswaldo. Na audiência do processo, Oswaldo relatou sua rotina de trabalho na cidade de Jataizinho, citou a pensão na qual morava, mencionou o nome do ex-prefeito e do secretário com os quais trabalhou, relatou até o nome da cantina na qual almoçava todos os dias e também o nome do seu proprietário, pessoa com quem conversava diariamente. Constou no processo, até mesmo uma declaração assinada pelo vice-prefeito da cidade, atestando que Oswaldo morou na cidade e atuou naquela prefeitura até 1964.

Apesar desses elementos, o processo correu e Oswaldo foi demitido a bem do serviço público em 1970. Lembremos que eram os anos da Ditadura e o SNI era um dos órgãos que dava suporte às investigações e perseguições realizadas pelo Regime Militar.

Destaque da ficha funcional de Oswaldo Savi, com o registro de sua demissão em 1970 e sua reintegração em 1980. Fonte: Acervo TRT-2.

Oswaldo perdeu seu cargo e precisou contar com a ajuda de um amigo da família, o juiz do TRT-2, e ex-presidente do Regional, Hélio Tupinambá Fonseca, que, em 1969, também tinha sofrido represálias do Governo Militar, ao ser aposentado uma segunda vez pelo AI-5.

Foi o mesmo Hélio, que, em 1979, representou Oswaldo em seu processo de reintegração. Naquele momento, dez anos após sua demissão, a fase mais dura e autoritária do Regime Militar tinha passado. Era possível, então, tentar reverter a injustiça do passado. E foi o que aconteceu. No processo de reintegração ficou provado que os supostos documentos “falsificados” eram legítimos e que não existia qualquer indício de fraude. Oswaldo foi reintegrado ao TRT-2. Para Maria Antônia, esse foi um dos momentos mais felizes de sua vida. “Senti uma alegria muito grande, porque sabia que ele estava sendo processado injustamente”, contou à equipe, sem esconder a emoção.

Segundo ela, era de amplo conhecimento dos colegas que o caso de Oswaldo tinha sido uma condenação injusta. Em sua concepção, a proximidade da família com o juiz aposentado Carlos de Figueiredo Sá fazia dos irmãos Savi uma ponte para atingir e incomodar Carlos e a irmã, Benedicta, que estavam no exílio.

Maria Antônia e o irmão Oswaldo. Fonte: fundo Benedicta Savi / acervo TRT-2.

Humanista – e extremamente humana

Maria Antônia considerava-se uma humanista. Segundo suas declarações, nunca compactuou com os excessos que o governo da época cometia. Ainda assim, não se envolvia com as questões políticas e acompanhava de longe a atuação do cunhado e da irmã. Apesar disso, o irmão, Oswaldo, sofreu com o processo, e a irmã, Benedicta, também foi processada e demitida, após ter se exilado fora do país.

Maria Antônia, apesar de ser enfática ao dizer que não se envolvia com as questões da época, passou a ser observada de perto pelo DOPS – Departamento de Ordem Política e Social.

Mais de uma vez foi levada à sede do Departamento de Ordem Política e Social para passar por longos interrogatórios, além de ter sido escoltada até o apartamento de Carlos de Figueiredo Sá, onde a polícia realizava buscas frequentes.

Em seu depoimento, Maria Antônia lembrou que todos os dias, ao sair de casa, era seguida de perto por um agente. O gerente do banco do qual era cliente, próximo a sua casa, a acompanhava até o ponto de ônibus. Suas sobrinhas pequenas, de tão acostumadas com a presença desses policiais, frequentemente diziam para a tia durante os passeios: “Olha lá tia, olha o homem”, relembrou.

Foi uma época bastante incômoda – e difícil – para toda a família Savi.

Maria Antônia considerava sua vida “tão sofrida” quanto a de sua irmã e a de seu cunhado. Enquanto Benedicta e Carlos estavam no exílio, Maria Antônia precisou ser “arrimo de família” e teve que conviver com a vigilância frequente das autoridades policiais.

Dizia ter ficado com “complexo de campainha”, medo deixado pela constante vigilância com a qual lidou. Em seu depoimento, relembrou das vezes em que sua mãe enfrentou os policiais, que insistiam em comparecer na casa da família para realizar buscas. Seu pai teria até adoecido por causa da pressão que sofriam, e pelo medo de a filha, Benedicta, ser presa.

Talvez daí tenha tirado ainda mais forças para ser não apenas uma servidora exemplar, mas também uma filha devota e cuidadosa. Em diversos momentos da entrevista mencionou sua dedicação aos pais idosos, falou das sobrinhas com o imenso carinho de uma tia que acompanhou de perto seu crescimento. Lembrou-se de todos os irmãos, e não deixou de expressar sua indignação com as injustiças sofridas por eles.

Maria Antônia ao lado de sua mãe. Fonte: fundo Benedicta Savi / acervo TRT-2.

Amor pelo trabalho

Apesar de algumas dificuldades enfrentadas, Maria Antônia lembrava-se de seus tempos de TRT-2 com bastante nostalgia e saudades.

A servidora trabalhou em apenas duas unidades diferentes em toda sua carreira no Regional: as juntas de Santo André e a 7ª JCJ de São Paulo, onde ficou por mais tempo – e por duas vezes.

Maria Antônia contava que sentia falta dos dias de trabalho, dos amigos que fez e também de como gostava de atender o público, “quando o bedel faltava”. Mencionou o termo, já em desuso, equivalente ao balconista nos dias de hoje.

Lembrava-se com carinho de alguns de seus colegas, servidores e magistrados, como Helder Almeida de Carvalho (magistrado do TRT-2 entre 1956 e 1997 e presidente do Regional entre 1988 e 1990) e Octávio Pupo Nogueira Filho (magistrado do TRT-2 entre 1956 e 1986). Além das servidoras Sônia Soares Domaradzki (servidora do TRT-2 entre 1958 e 1980) e Ordália Monteiro Paes Machado Coelho (servidora do TRT-2 entre 1956 e 1985).

Em tom divertido, comentou como, antigamente, as pessoas que trabalhavam no TRT-2 “vestiam-se para se exibir”, tamanha a pompa e elegância de magistrados e servidores. Também mencionou alguns colegas ilustres, como Maria Portinari Carvalho (servidora do TRT-2 entre 1953 e 1975), irmã do pintor Cândido Portinari, personagem mencionada também pela família do juiz Nelson Ferreira de Souza, presidente do TRT-2 entre 1980 e 1981.

Entre esses antigos companheiros de TRT-2, lembrou-se com muito carinho de Hélio Tupinambá Fonseca, o magistrado amigo, admirado pela sua competência, mas também pela sua simpatia e companheirismo. Foi Hélio quem se dispôs a acolher Oswaldo, quando ele perdeu seu cargo injustamente, e foi o juiz aposentado quem incentivou Benedicta Savi a entrar com um processo de reintegração para corrigir um erro que o Tribunal havia cometido na década de 1960. Em períodos difíceis esteve ao lado da família Savi, e foi lembrado por Maria Antônia com um misto de admiração e respeito.

Hélio e Carlos Sá possuíam divergências em suas interpretações nos processos, e invariavelmente debatiam tais posições, mas nutriam uma forte amizade, que se estendeu aos irmãos Savi até o fim de sua vida. Foi um dos melhores amigos que Maria Antônia teve em sua passagem pelo TRT-2.

O curso de direito e a aposentadoria

Faltava pouco tempo para se aposentar, quando Maria Antônia decidiu cursar direito. Sua pretensão era seguir carreira na advocacia. Naquele momento de sua vida, era arrimo de família e auxiliava os pais idosos.

Formou-se bacharel em direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie em 1973, aos 48 anos, mas optou por continuar no TRT-2, aposentando-se sete anos depois, em 1980. Ainda atuou um tempo como advogada no escritório de uma amiga. Sua vida de aposentada, porém, acabou por ser dedicada à família.

Ainda assim, contava que havia sido difícil se afastar do trabalho, que no início, ficou um pouco “depressiva”, pois o TRT-2 fazia parte de sua rotina, e era uma atividade da qual gostava muito.

Maria Antônia em sua formatura. Fonte: fundo Benedicta Savi / acervo TRT-2.

As perseguições sofridas pelos irmãos e pelo cunhado, consequências de um momento político no qual o autoritarismo e a intolerância dominaram, ficaram marcadas na memória de Maria Antônia, que sofreu na pele, com a constante vigilância, o medo e as saudades relativas à irmã no exílio. Porém, apesar das dificuldades pelas quais passou, Maria Antônia se lembrava de seu tempo como servidora com nostalgia e carinho. Segundo ela, o “TRT-2 foi uma mãe”, pois lhe permitiu construir uma bela carreira como servidora, e ainda levar sustento e conforto para a sua família.

Sua aposentadoria foi merecida, e pôde compartilhar bons momentos com a irmã, Benedicta, mais tarde, após o seu retorno ao Brasil. Foi assim que encontramos essas duas veteranas do TRT-2 em 2019. Vivendo juntas, uma aposentadoria tranquila, mas ativa, com o sentimento de dever cumprido. Cercadas de amigos e familiares, Maria Antônia e Benedicta pareciam satisfeitas com os caminhos que escolheram seguir.

Infelizmente, Maria Antônia Savi faleceu em dezembro de 2020 e não pode presenciar a publicação desse texto e do vídeo de sua entrevista. Deixamos, entretanto, nosso agradecimento e homenagem a uma servidora que representou tão bem a trajetória de muitos de seus colegas, trabalhadores abnegados que dedicaram suas carreiras a manter a Justiça do Trabalho em pleno funcionamento.

Os irmãos Savi traçaram caminhos diferentes, porém todos conectados com a história do TRT-2. Essas trajetórias diversas, apesar de entrelaçadas, apontam para as valiosas lições da história, sobre a necessidade de se valorizar tanto as extraordinárias narrativas, quanto as supostamente prosaicas trajetórias de pessoas igualmente comprometidas com seus ideais. Todas elas possuem seu valor e precisam ser preservadas.

Com esse episódio do projeto “Memórias Narradas”, mais um pedaço da memória do TRT-2 foi resguardado do esquecimento, por meio do ponto de vista de uma de suas servidoras. Uma trajetória tão importante quanto todas as outras que se cruzaram com a história da Justiça do Trabalho. Maria Antônia Savi estava enganada ao achar que não tinha muito o que contar, pois nos deixou belas e importantes memórias.

Memórias Trabalhistas é uma página criada pelo Centro de Memória do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, setor responsável pela pesquisa e divulgação da história do TRT-2. Neste espaço, é possível encontrar artigos, histórias e curiosidades sobre o TRT-2, maior tribunal trabalhista do país.

Acesse também o Centro de Memória Virtual e conheça nosso acervo histórico, disponível para consulta e pesquisa.


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Publicado por Lucas Lopes de Moraes

Antropólogo, graduado em ciências sociais, possui mestrado e doutorado em antropologia no Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da USP. Possui experiência em pesquisa e análise de dados qualitativos e em projetos de acervo. Colecionador de discos, apaixonado pela etnografia e pelo trabalho de campo, defende que as trajetórias de pessoas e coisas são a maior fonte de conhecimento. É servidor do TRT-2 desde 2015.

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